quinta-feira, 3 de abril de 2008

Ceilândia 37 anos - crônica

Ceilândia, incansável Ceilândia


A maior cidade do Distrito Federal é também a mais verdadeiramente brasiliense, tirando, claro, o Plano. O casamento do nordestino com o modernismo produziu resultados deliciosos. A incansável Ceilândia suporta, desde o começo, a fama de violenta, mesmo depois que a violência se esparramou por todo o Dê-Efe. É a cidade dos forrós e do samba, da cachaça e do sarapatel, da Feira do Priquito, dos repentistas, da Caixa d´Água, dos camelôs, da Beth e Lilly Confecções.

Ceilândia é a cidade mais internacional de Brasília. Pergunte a alguém de fora do quadradinho qual a cidade satélite que ele conhece de nome e ele dirá Ceilândia (e depois Taguatinga). Ceilândia é mais barulhenta, é mais apressada, é a cidade do Setor Bolinha, das Que-Nada-Nada, do Setor P, da Guariroba. Os cantadores cantam Ceilândia, os rappers cantam Ceilândia, até Drummond fez poesia pra Ceilândia.

É a cidade que juntou numa só geografia o Morro do Querosene, do Urubu, da invasão do Iapi, da Vila Tenório, Esperança, do Curral das Éguas, da Placa da Mercedes, da Bernardo Sayão e da Colombo. No final dos anos 1960, havia 80 mil pessoas vivendo em favelas ao redor do Plano Piloto para uma Brasília de 500 mil habitantes. Era o Brasil pedindo pra morar.

Teve um tempo, um longo tempo, que o ceilandense tinha vergonha de dizer onde morava. Na Brasília segregada de sempre, os moradores do Plano olhavam para os de Ceilândia com certo ar de branco de Joanesburgo.

A remoção dos barracos para a nova cidade trouxe de volta a atmosfera épica da construção. A mudança era completa: família, cães, gatos, galinhas, passarinhos, móveis e o barraco propriamente dito. Cada família desmontava sua casa, a maioria de pedaços de madeira velha, punha no caminhão e a reconstruía novamente. A mudança monumental começou em 27 de março de 1971. Filas de caminhões cortavam o cerrado bruto em direção à nova cidade. Nova e cidade eram modos de dizer. A Ceilândia inaugural era, na verdade, um gigantesco acampamento de refugiados das favelas. Não havia água nem luz nem transporte. Só poeira no verão e lama no inverno.

Um poeta popular contou a história daqueles dias e o historiador Adirson Vasconcelos a reproduziu em As cidades satélites de Brasília: “O fiscal dá uma olhada/mudança autorizada/tudo no caminhão/roupas com vasilhas/madeiras do barracão/foi uma luta para as famílias/se mudarem da invasão./A viagem foi de pressa/apesar da amolação/gente rezando à beça/para que aquela promessa/não fosse tapeação.//Não tinha água encanada/não tinha iluminação/só sei que era uma parada/de noite na escuridão.//Lá na fila da torneira/era um perigo danado/tinha gente com peixeira/pra enfiar no coitado/que fosse pra dianteira/encher sua lata calado”.


Fonte: Correio Braziliense de 27/03/08

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