quarta-feira, 30 de abril de 2008

Orgulho e humilhação

"Foi a gente que fez a fundação do Congresso Nacional. O que eu conheço por Congresso Nacional é aquele prédio que parece um cuscuz, todo redondinho. Nosso alojamento ficava no lugar onde hoje é a rampa. Primeiro, a máquina cavava o buraco. Depois, a gente descia agarrado ao cabo de aço, junto com um balde, pra tirar o resto de terra que tinha ficado lá embaixo. A fundura variava, era 15, 20, 30 metros… O Vinte e Oito foi bem uns 40 metros de chão adentro. Quando eu terminava de encher o balde, dava um sinal para o peão lá em cima puxar. Era um sobe-e-desce danado. Depois de tudo limpo, eu subia de volta, agarrado no balde. Na subida, eu ia rodando igual um parafuso, porque o corpo ia batendo de lado no buraco. Saia todo sujo de lama, igualzinho um tatu. (…) Se morria gente? Vixe! Só no Hospital Distrital (Hospital de Base), vi morrer 13 pessoas de uma vez."

Quem descreve o subterrâneo da epopéia Brasília é o baiano Otacílio Zacarias dos Santos, que aqui chegou em 1958. Quem ouviu o relato foi o jornalista e pesquisador Edson Beú Luiz na dissertação Os filhos dos candangos: exclusão e identidades, apresentada ao Departamento de História da UnB. Beú já havia escrito o Expresso Brasília, livro-crônica da história da construção vista pelos olhos dos operários da construção civil. Com a nova obra, Beú dá continuidade à primeira, desta vez ouvindo os filhos dos peões que construíram esta cidade.

Onde eles estão?
Excluídos.

Edson Beú foi encontrá-los na Ceilândia para onde foram removidas 80 mil pessoas que há mais de dez anos viviam na Vila do Iapi, a gigantesca invasão dos primeiros tempos de Brasília. Encontrou uma gente adulta que carrega no peito a mágoa de terem pais-heróis, que construíram a capital da arquitetura moderna, e ao mesmo tempo viverem às margens dela. A maioria dos entrevistados considera Brasília somente o Plano Piloto. Um deles diz que ela é "o monumento à elite". Ao mesmo tempo, os filhos dos candangos têm forte admiração pela cidade que Lucio Costa inventou e Niemeyer bordou com as linhas do concreto.

Os filhos dos candangos carregam na história de sua vida dois repatriamentos: o dos pais, que deixam a terra natal para tentar ganhar algum na nova capital e o deles mesmos, retirados da Vila do Iapi e levados para um ermo monumental que era a Ceilândia antes de se consolidar como cidade. "Ambos (pais e filhos) trocaram o ambiente familiar de origem por uma condição de estrangeiridade, porque a inóspita Ceilândia de 1971 era uma terra tão estranha para os filhos quanto a Brasília dos anos 50 havia sido para os pais. A trajetória de um e de outro envolveu um processo de desenraizamento, de quebra de laços culturais, frustrações e recomeços. Tudo isso produziu um acúmulo de sentimentos, muitos deles contraditórios, em que as palavras de indignação dos filhos são às vezes silenciadas pela forte imagem do pai-herói", escreveu Beú.

Os brasilienses filhos dos operários que construíram a cidade habitam um terreno partido. De um lado, o orgulho de saber que o pai ajudou a construir a capital e, de outro, o sentimento de humilhação por não fazer parte dela.


Fonte: Blog Correio Braziliense e Correio Braziliense de 29/04/08

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