sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Gana de viver



Conversávamos sobre o destino. Dadas as mesmas condições, por que alguns saltam sobre grandes obstáculos e outros ficam no meio do caminho. Um dos interlocutores argumentava que o Estado é o culpado de tudo, porque não dá as condições mínimas para que o talento de cada um possa florescer. O outro dizia que, a despeito da responsabilidade dos governos sobre o bem-estar das populações, cada um tem um espaço mínimo de livre arbítrio, no qual pode se movimentar para forjar um novo destino.

Deu-se assim com Ketleyn Quadros, a ceilandense de bronze. Ela agarrou com todas as unhas de menina o gosto pelo judô . Começou no SESI de Ceilândia, hoje um conjunto arquitetônico que contrasta com a pobreza ao redor. A avó Marilda era quem levava a neta aos treinos — “Tinha dias que a gente não tinha dinheiro para pagar a passagem de ônibus”, ela disse a Marcelo Abreu.

A idéia de levar Ketleyn (que o tio aportuguesou para Catarina, e tornou a vida dele bem mais fácil), a idéia de levá-la a uma escolinha de esportes veio de uma professora de escola-classe, de um olhar amoroso. É do que uma criança precisa para começar a buscar seus caminhos. Ketleyn era hiperativa — andava de patins, skate, jogava futebol, volêi, handebol. A menina começou na natação, mas os olhos dela foram capturados pelo tatame. Parava para ver as aulas de judô. O professor de judô a convidou para treinar, mais um olhar atento e generoso.

A menina tinha energia dos atletas e gostava de um corpo a corpo — não recusava uma briga na rua. Era preciso canalizar essa beligerância desordenada. “Ela sempre teve raça”, diz o primeiro técnico, Éder Marques da Silva, na matéria publicada ontem (12/08/08) no caderno de Esportes do Correio.

Pela foto publicada na primeira página de ontem do jornal, raça é bem de família. A mãe de menina de bronze, Rosemary (que parece ter quase a mesma idade da filha) com o cartaz em mandarim anunciando que era mãe de uma atleta brasileira e estava sem ingresso tocou o coração de alguém ou de mais de um alguém. Para conseguir os R$ 6,3 mil para as passagens mais US$ 1,5 mil para a estada em Pequim, saiu atrás de empresários e políticos com o mesmo argumento de mãe.

Um jornalista chinês chamou Ketleyn de mulher de gelo porque ela não se comportou à brasileira. A menina de bronze da Ceilândia está chegando ao sentimento da vitória devagarzinho. Talvez no chuveiro, no meio da noite, olhando pela janela do ônibus, ela será inundada pelo gosto da conquista.

Conversávamos sobre o destino. Há um espaço de livre arbítrio, de escolhas e apostas. Se se soma ao talento, ao olhar generoso de alguém e à sorte, é possível escapar do destino marcado. Eu acredito, Ketleyn e Rosemary também.


Fonte: Blog Correio Braziliense e Correio Braziliense de 13/08/08

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