Ela tem o nome dele. Muito antes, ele tinha feito um poema para ela. Os dois se chamam Carlos Drummond de Andrade.
Encontraram-se pela primeira vez quando o poeta, acatando convite de Alceu Amoroso Lima, lançou seu olhar para as favelas do país e escreveu o doído Favelário Nacional, roteiro poético da miséria brasileira.
Drummond vai às favelas do Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife, aos morros, alagados e mangueirais e chega à capital que se pretendia utópica: “A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia/contemplam-se. Qual delas falará/primeiro? Que tem a dizer ou a esconder/uma em face da outra? Que mágoas, que/ressentimentos/prestes a saltar da goela coletiva/e não se exprimem? (…)”
É um longo poema ferido. A certa altura, aponta o dedo para os não favelados: “Custa ser irmão,/custa abandonar nossos privilégios/e traçar a planta/da justa igualdade./Somos desiguais e queremos ser/sempre desiguais”.
O poeta que foi colega de repartição de Lucio Costa, e de quem era declarado admirador, expunha as contradições que feriam o projeto de uma nova cidade. “Por que Ceilândia fere majestoso orgulho da flórea capital?”
Algum tempo depois, já não tão esquálida assim, Ceilândia ganhava uma biblioteca e que biblioteca. É uma construção potente, de 1.263 metros quadrados e dois pavimentos, num imenso terreno. Hoje, divide estacionamento com a estação Ceilândia Norte do metrô e tem a seu lado o malfalado Quadradão, área construída para atividades de esporte, cultura e lazer e que, abandonada pelo Estado, se transformou em endereço do crack.
Apesar do generoso espaço físico, a biblioteca é bastante singela. O site oficial informa que ela abriga um acervo de 60 mil livros e periódicos. Mas a oferta de títulos de literatura, por exemplo, é modesta, salvo no caso de alguns escritores — há razoável fartura de Machado, Jorge Amado, Monteiro Lobato, Fernando Sabino, José de Alencar e Agatha Christie.
Drummond é o mestre de cerimônia da biblioteca. Há dois banners com imagens dele à entrada. E um poema de Manuel Bandeira que trata de tema bem parecido com o do Favelário Nacional. (“Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos./Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade.”)
O bicho de que Bandeira fala não era um cão nem um gato nem um rato: “O bicho, meu Deus, era um homem”.
Uma exposição de fotos de Ceilândia, feitas por ceilandenses, revela como os moradores a veem: uma cidade que tem na Caixa d’Água seu principal patrimônio construído, que está orgulhosa de ter o metrô, que se identifica com a feira permanente, com os grafiteiros, com os mendigos que dormem no banco da praça e que tem tão vasto céu e tão lindo pôr do sol quanto o Plano Piloto.
A biblioteca Carlos Drummond de Andrade comemorou 15 anos em dezembro passado.
Conceição Freitas
Fonte: Correio Braziliense de 11/03/09
Encontraram-se pela primeira vez quando o poeta, acatando convite de Alceu Amoroso Lima, lançou seu olhar para as favelas do país e escreveu o doído Favelário Nacional, roteiro poético da miséria brasileira.
Drummond vai às favelas do Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife, aos morros, alagados e mangueirais e chega à capital que se pretendia utópica: “A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia/contemplam-se. Qual delas falará/primeiro? Que tem a dizer ou a esconder/uma em face da outra? Que mágoas, que/ressentimentos/prestes a saltar da goela coletiva/e não se exprimem? (…)”
É um longo poema ferido. A certa altura, aponta o dedo para os não favelados: “Custa ser irmão,/custa abandonar nossos privilégios/e traçar a planta/da justa igualdade./Somos desiguais e queremos ser/sempre desiguais”.
O poeta que foi colega de repartição de Lucio Costa, e de quem era declarado admirador, expunha as contradições que feriam o projeto de uma nova cidade. “Por que Ceilândia fere majestoso orgulho da flórea capital?”
Algum tempo depois, já não tão esquálida assim, Ceilândia ganhava uma biblioteca e que biblioteca. É uma construção potente, de 1.263 metros quadrados e dois pavimentos, num imenso terreno. Hoje, divide estacionamento com a estação Ceilândia Norte do metrô e tem a seu lado o malfalado Quadradão, área construída para atividades de esporte, cultura e lazer e que, abandonada pelo Estado, se transformou em endereço do crack.
Apesar do generoso espaço físico, a biblioteca é bastante singela. O site oficial informa que ela abriga um acervo de 60 mil livros e periódicos. Mas a oferta de títulos de literatura, por exemplo, é modesta, salvo no caso de alguns escritores — há razoável fartura de Machado, Jorge Amado, Monteiro Lobato, Fernando Sabino, José de Alencar e Agatha Christie.
Drummond é o mestre de cerimônia da biblioteca. Há dois banners com imagens dele à entrada. E um poema de Manuel Bandeira que trata de tema bem parecido com o do Favelário Nacional. (“Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos./Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade.”)
O bicho de que Bandeira fala não era um cão nem um gato nem um rato: “O bicho, meu Deus, era um homem”.
Uma exposição de fotos de Ceilândia, feitas por ceilandenses, revela como os moradores a veem: uma cidade que tem na Caixa d’Água seu principal patrimônio construído, que está orgulhosa de ter o metrô, que se identifica com a feira permanente, com os grafiteiros, com os mendigos que dormem no banco da praça e que tem tão vasto céu e tão lindo pôr do sol quanto o Plano Piloto.
A biblioteca Carlos Drummond de Andrade comemorou 15 anos em dezembro passado.
Conceição Freitas
Fonte: Correio Braziliense de 11/03/09
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