segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Os incansáveis

“Os incansáveis da Ceilândia

Cabelos arrumados no posto, chegado o poeta Nicolas Behr, rumamos para a Ceilândia, ao encontro do historiador Manoel Jevan, que sabe muito sobre o lugar onde mora, coisa rara e boa. Ele levou-nos à Caixa d’água, a uma palmeira guariroba, a uma banca de rua onde vendem livros, ao projeto de Niemeyer, “o único numa cidade do Entorno”, disse Jevan, orgulhoso, e mostrou-nos a Casa do cantador.

O cearense Manoel Jevan fez em sua casa um museu de memória da cidade, onde estão fotos, filmes, documentos sobre a criação da Ceilândia e uma reprodução do poema de Drummond, que confronta “a suntuosa Brasília e a esquálida Ceilândia contemplam- se. Qual delas falará primeiro? Que tem a dizer ou a esconder uma em face da outra? Que mágoas, que ressentimentos prestes a saltar da goela coletiva e não se exprimem? Por que Ceilândia fere o majestoso orgulho da flórea capital?”

Ceilândia para mim evocava Ceilão, mas disse o historiador que vem de CEI, sigla de Campanha de Erradicação das Invasões. Em 1971, poderes públicos decidiram retirar de suas casas muitos dos construtores de Brasília, operários e suas famílias, que foram chamados de invasores porque moravam onde “não-invasores” esqueciam de possuir, moravam em lugares bons e desejados pelos abastados, ou que sujavam a vista dos pássaros de aço: Vila IAPI, Placa de Mercedes, Tenório, Esperança, Morro do Urubu, Querosene… Foram quinze mil barracos derrubados. A maioria dessas pessoas era nordestina, muitas tinham chegado a Brasília no ano da grande seca, flageladas.

Os poderes escolheram, para fundar uma nova cidade satélite, um lugar instável, brejo capaz de engolir casas, onde havia erosão, onde não tinha sido possível instalar um campo de pouso, e foi desse grande terreno que distribuíram um barril de lotes, e as casas foram sendo erguidas, o eterno recomeço das pessoas, ainda mais as honestas, trabalhadoras e pobres. A cidade cresceu de qualquer jeito, sem os “poderes” a organizar, já não é mais esquálida, é imensa.

Os habitantes tiveram de se arrumar eles mesmos, e se ajeitaram, criaram uma das mais fortes organizações de moradores, os Incansáveis, mudaram o significado da sigla, tomaram posse, ficaram orgulhosos, muitos passam o dia em Brasília, trabalhando, mas muitos ficam por ali e vão desenvolvendo a cidade. Ali há todo um universo que eles compreendem, amam. Ali há forró, rap, repentistas, hino oficial, cachaça, feira do Periquito, professora Francisca Vicentina, Academia de Letras, Biblioteca Pública e das grandes, gente que gosta de ler, orquestra sinfônica, Apa do Descoberto, parque ecológico, dona Percília, dona Jabesminda, Helroy, Ângela das Caliandras (que beleza de nome), corações clandestinos… Teresinha do Coco, Galdino de Atalaia, pioneiros, pontas de flecha de cristal, o poeta Joaquim Bezerra da Nóbrega, quem sabe meu parente lá do Sabugi na Paraíba, que canta: “Ceilândia, eis o meu lar, Pra onde sempre eu regresso”.

Senti-me bem na Ceilândia. É uma cidade de alma nordestina, ali tem algo de minha terra, tem até jornal do Ceará, e algo a ser entendido por todos. Ceilândia pode não ser bonita aos olhos acostumados a majestosos e orgulhosos padrões, mas aos olhos atentos ali há beleza, a de um Brasil verdadeiro e profundo, lutador, alegre, que corre nas margens, é a goela coletiva de que fala Drummond.”



Ana Miranda


Fonte: Correio Braziliense de 07/12/08 e Ceilândia.com

Nenhum comentário: