Todo dia, quando se olha no espelho, Émerson Batista de Aniceto não vê apenas o seu reflexo. A imagem do outro lado bem que poderia ser daquele que nunca encontrou, mas que reconheceria onde estivesse. Émerson vive à procura do irmão gêmeo, idêntico, que desapareceu do Hospital São Vicente de Paula, em Taguatinga, há 35 anos, 26 dias depois do nascimento. É no olhar que se reconhece o quanto ele quer localizar Élson. São olhos tristes, de quem não aprendeu a sorrir. Mas que não perde a esperança de matar a saudade de alguém que ainda nem conheceu. Alguém que pode gostar das coisas que ele gosta, como filmes de ação e música romântica, ou ter a mesma mania, de estar sempre passando a mão nos cabelos.
A história de Émerson, que trabalha numa loja de veículos da Asa Sul, se resume à busca por Élson. Maria da Piedade Pereira deu entrada no Hospital São Vicente de Paula, em Taguatinga, em 22 de novembro de 1972, para ganhar um filho. O médico, Mário Dias do Valle, disse que eram dois. Ela voltou com um para casa. O outro, magrinho, ficou no hospital para ganhar peso. Todo dia, Maria e José Nonato de Aniceto saíam de casa, em Ceilândia Norte, para visitar o bebê. Não podiam pegá-lo no colo, apenas ver pelo vidro do berçário. Até que, 26 dias depois do parto, em meados de dezembro, José foi buscar o filho e não o encontrou.
“Não está mais aqui”, disse a enfermeira. “Parece que seu filho morreu”, completou. José pediu mais explicações. Queria o atestado de óbito, o corpo do menino para enterrar. “Não sei mais nada, se informe na recepção”, respondeu a mulher de branco. “Aqui não sabemos de nada. Só tem papel de entrada, não tem atestado de óbito”, disseram. “Então, onde ele está?”, tornou a indagar José, desesperado. “Volte no berçário e pergunte”, foi a resposta, fria, lacônica.
José conta que procurou o diretor do hospital. Ele estava reunido com um homem que o mandou procurar outra funcionária. Com ela, José esteve em vários locais do prédio tentando encontrar o filho. Antes de deixar o hospital, ouviu do diretor a frase que nunca esqueceu: “É melhor deixar como está. Isso é complicado”. Ele entendeu como uma ameaça. Voltou para casa de braços vazios. “Naquela época, pobre não tinha vez. Fiquei com medo que mandassem matar a gente se fôssemos atrás do nosso filho”, explica, de cabeça baixa.
Hoje com 72 anos, o médico José Carlos Britto Vidal, que dirigia o Hospital São Vicente de Paula, em 1972, afirma não se lembrar da história. E diz que em 1975, quando a instituição foi fechada, os documentos foram transferidos para o HRT. Tudo isso aconteceu há quase 36 anos. Enquanto pôde, Piedade escondeu de Émerson a existência do irmão. “Para quê mais um a sofrer?”, pensava. Mas na escola pediram a certidão para fazer a matrícula. “Aqui diz que ele tem um irmão gêmeo. Ele não vai estudar?”, perguntaram.
Maria da Piedade fala de seu caso sempre que pode. “A gente sente que ele está vivo”, afirma a mãe em nome da família. “Se o Élson souber da gente, pode continuar a vida dele como é. Não queremos obrigar ele a nada. Mas só de vê-lo já vou ficar feliz e todos aqui em casa também. A gente fala muito nele, sobre terem feito essa maldade. Imagino que ele nem sabe que tem outra família”, diz Piedade, com os olhos molhados e a voz emocionada. Émerson, que aos 7 anos achava que era um só, soube, de repente, que havia outro irmão, nascido na mesma data, mas que fora levado do hospital.
Desde o dia em que ouviu a história do irmão, o menino mudou. Cismado, brincava com os amigos na rua, pensando: “Meu irmão podia estar jogando bola comigo.” Cresceu assim, procurando um rosto igual ao seu. A mãe conta que ele não parava em casa. “Entrava e saía a toda hora. A gente achava que ele queria achar o irmão na rua”, diz Maria. Ainda hoje, Émerson tem dificuldade para falar no assunto. “Eu queria era encontrar o Élson, abraçar , ver se parece mesmo comigo. Queria andar na rua com ele, quem sabe até trabalhar junto”, fala o rapaz com o olhar ao longe.
Há seis anos, Edith, mulher de Édison, um dos irmãos de Émerson, estava em um ônibus em Taguatinga Norte, quando viu um rapaz que era igual ao Émerson. Depois desse encontro, o filho Édison passou a incentivar os pais a procurar o irmão. O apoio dos filhos e o surgimento de associações que trabalhavam na busca de pessoas desaparecidas deram a Piedade a força necessária para procurar o filho perdido.
Em 2005, foi à Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça. Contou a história, e incluiu os dados de Élson. Na hora da foto, como identificar o filho que perdera com 26 dias? A resposta foi fácil de encontrar. Émerson cedeu uma foto sua.O rapaz, que pouco falava sobre o assunto com a família, sentiu um ânimo novo. A foto de Émerson saiu nas contas de água da Caesb na mesma época, quando José Nonato deu queixa do desaparecimento do filho na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente.
No início de 2008, o médico que fez o parto dos gêmeos foi chamado. Mário Dias do Valle está com 77 anos. “Não sei quantos partos fiz até hoje”, diz, e afirma não se lembrar do caso em particular. “Levei a intimação da delegacia para a diretoria do HRT. Se os documentos não foram incinerados, estão lá”, completa o médico. A delegada Gláucia Cristina Ésper, titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, determinou o prosseguimento das investigações.
A Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, que deu origem ao Código Civil Brasileiro, vigorou até o ano de 2002. Carregada de preconceitos, a antiga lei considerava ilegítimo o filho nascido fora do casamento. De acordo com o advogado Fabrício Mota, para reconhecer um filho fora do casamento o pai ou a mãe precisavam, antes, se separar.
Mota salienta que foi a Constituição de 1988 igualou os direitos dos filhos, dentro e fora do casamento, conforme o artigo 227, parágrafo 6º: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Nos anos 1960, quando José Nonato de Aniceto conheceu Maria da Piedade Pereira, a lei que vigorava ainda era a da discriminação. Casado, com duas filhas, José deixou a mulher e foi viver com Maria, que era viúva e tinha dois meninos. Logo, começaram a nascer os filhos da união dos dois. Mas a lei proibia que as crianças fossem registradas no nome deles.
José não aceitou a idéia de que os filhos recebessem apenas o nome da mãe. Trocara de vida por amor. E por amor queria que seu nome constasse do nome daqueles que tinham seu sangue. Quando a hora do parto chegou, bateu o desespero. O que fazer? Eles só acharam uma saída: apresentar a certidão de casamento de José com a mulher legítima. Maria da Piedade foi internada com o nome da outra, e o filho que ela gerara e parira, ganhou o sobrenome de uma mulher desconhecida.
Foi assim com sete dos oito filhos que tiveram juntos. Apenas a mais moça, Egilsa, foi registrada com o nome da mãe. Com a separação de José, o casal tentou, na Justiça, reverter as certidões dos filhos. Mas o processo demorou tanto tempo, que eles desistiram. A menina estava com 4 anos e sem documento. Maria da Piedade resolveu, então, registrá-la antes que chegasse a hora de colocar a filha na escola.
Há alguns anos, conta José, a ex-esposa soube que ele havia registrado os filhos no nome dela e ameaçou entrar na Justiça para receber pensão. Depois, desistiu. Adultos, os filhos entendem o drama dos pais e estão do lado deles. Edite, a nora, garante: “É uma família muito unida. Eles se amam muito”, afirma.
Se alguém tiver notícias de Élson Batista de Aniceto, ligue para (61) 3371 3213.
Fonte: Correio Braziliense de 11 e 12/09/08, Rede Record e Jornal Local de 12/09/08
A história de Émerson, que trabalha numa loja de veículos da Asa Sul, se resume à busca por Élson. Maria da Piedade Pereira deu entrada no Hospital São Vicente de Paula, em Taguatinga, em 22 de novembro de 1972, para ganhar um filho. O médico, Mário Dias do Valle, disse que eram dois. Ela voltou com um para casa. O outro, magrinho, ficou no hospital para ganhar peso. Todo dia, Maria e José Nonato de Aniceto saíam de casa, em Ceilândia Norte, para visitar o bebê. Não podiam pegá-lo no colo, apenas ver pelo vidro do berçário. Até que, 26 dias depois do parto, em meados de dezembro, José foi buscar o filho e não o encontrou.
“Não está mais aqui”, disse a enfermeira. “Parece que seu filho morreu”, completou. José pediu mais explicações. Queria o atestado de óbito, o corpo do menino para enterrar. “Não sei mais nada, se informe na recepção”, respondeu a mulher de branco. “Aqui não sabemos de nada. Só tem papel de entrada, não tem atestado de óbito”, disseram. “Então, onde ele está?”, tornou a indagar José, desesperado. “Volte no berçário e pergunte”, foi a resposta, fria, lacônica.
José conta que procurou o diretor do hospital. Ele estava reunido com um homem que o mandou procurar outra funcionária. Com ela, José esteve em vários locais do prédio tentando encontrar o filho. Antes de deixar o hospital, ouviu do diretor a frase que nunca esqueceu: “É melhor deixar como está. Isso é complicado”. Ele entendeu como uma ameaça. Voltou para casa de braços vazios. “Naquela época, pobre não tinha vez. Fiquei com medo que mandassem matar a gente se fôssemos atrás do nosso filho”, explica, de cabeça baixa.
Hoje com 72 anos, o médico José Carlos Britto Vidal, que dirigia o Hospital São Vicente de Paula, em 1972, afirma não se lembrar da história. E diz que em 1975, quando a instituição foi fechada, os documentos foram transferidos para o HRT. Tudo isso aconteceu há quase 36 anos. Enquanto pôde, Piedade escondeu de Émerson a existência do irmão. “Para quê mais um a sofrer?”, pensava. Mas na escola pediram a certidão para fazer a matrícula. “Aqui diz que ele tem um irmão gêmeo. Ele não vai estudar?”, perguntaram.
Maria da Piedade fala de seu caso sempre que pode. “A gente sente que ele está vivo”, afirma a mãe em nome da família. “Se o Élson souber da gente, pode continuar a vida dele como é. Não queremos obrigar ele a nada. Mas só de vê-lo já vou ficar feliz e todos aqui em casa também. A gente fala muito nele, sobre terem feito essa maldade. Imagino que ele nem sabe que tem outra família”, diz Piedade, com os olhos molhados e a voz emocionada. Émerson, que aos 7 anos achava que era um só, soube, de repente, que havia outro irmão, nascido na mesma data, mas que fora levado do hospital.
Desde o dia em que ouviu a história do irmão, o menino mudou. Cismado, brincava com os amigos na rua, pensando: “Meu irmão podia estar jogando bola comigo.” Cresceu assim, procurando um rosto igual ao seu. A mãe conta que ele não parava em casa. “Entrava e saía a toda hora. A gente achava que ele queria achar o irmão na rua”, diz Maria. Ainda hoje, Émerson tem dificuldade para falar no assunto. “Eu queria era encontrar o Élson, abraçar , ver se parece mesmo comigo. Queria andar na rua com ele, quem sabe até trabalhar junto”, fala o rapaz com o olhar ao longe.
Há seis anos, Edith, mulher de Édison, um dos irmãos de Émerson, estava em um ônibus em Taguatinga Norte, quando viu um rapaz que era igual ao Émerson. Depois desse encontro, o filho Édison passou a incentivar os pais a procurar o irmão. O apoio dos filhos e o surgimento de associações que trabalhavam na busca de pessoas desaparecidas deram a Piedade a força necessária para procurar o filho perdido.
Em 2005, foi à Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça. Contou a história, e incluiu os dados de Élson. Na hora da foto, como identificar o filho que perdera com 26 dias? A resposta foi fácil de encontrar. Émerson cedeu uma foto sua.O rapaz, que pouco falava sobre o assunto com a família, sentiu um ânimo novo. A foto de Émerson saiu nas contas de água da Caesb na mesma época, quando José Nonato deu queixa do desaparecimento do filho na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente.
No início de 2008, o médico que fez o parto dos gêmeos foi chamado. Mário Dias do Valle está com 77 anos. “Não sei quantos partos fiz até hoje”, diz, e afirma não se lembrar do caso em particular. “Levei a intimação da delegacia para a diretoria do HRT. Se os documentos não foram incinerados, estão lá”, completa o médico. A delegada Gláucia Cristina Ésper, titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, determinou o prosseguimento das investigações.
A Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, que deu origem ao Código Civil Brasileiro, vigorou até o ano de 2002. Carregada de preconceitos, a antiga lei considerava ilegítimo o filho nascido fora do casamento. De acordo com o advogado Fabrício Mota, para reconhecer um filho fora do casamento o pai ou a mãe precisavam, antes, se separar.
Mota salienta que foi a Constituição de 1988 igualou os direitos dos filhos, dentro e fora do casamento, conforme o artigo 227, parágrafo 6º: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Nos anos 1960, quando José Nonato de Aniceto conheceu Maria da Piedade Pereira, a lei que vigorava ainda era a da discriminação. Casado, com duas filhas, José deixou a mulher e foi viver com Maria, que era viúva e tinha dois meninos. Logo, começaram a nascer os filhos da união dos dois. Mas a lei proibia que as crianças fossem registradas no nome deles.
José não aceitou a idéia de que os filhos recebessem apenas o nome da mãe. Trocara de vida por amor. E por amor queria que seu nome constasse do nome daqueles que tinham seu sangue. Quando a hora do parto chegou, bateu o desespero. O que fazer? Eles só acharam uma saída: apresentar a certidão de casamento de José com a mulher legítima. Maria da Piedade foi internada com o nome da outra, e o filho que ela gerara e parira, ganhou o sobrenome de uma mulher desconhecida.
Foi assim com sete dos oito filhos que tiveram juntos. Apenas a mais moça, Egilsa, foi registrada com o nome da mãe. Com a separação de José, o casal tentou, na Justiça, reverter as certidões dos filhos. Mas o processo demorou tanto tempo, que eles desistiram. A menina estava com 4 anos e sem documento. Maria da Piedade resolveu, então, registrá-la antes que chegasse a hora de colocar a filha na escola.
Há alguns anos, conta José, a ex-esposa soube que ele havia registrado os filhos no nome dela e ameaçou entrar na Justiça para receber pensão. Depois, desistiu. Adultos, os filhos entendem o drama dos pais e estão do lado deles. Edite, a nora, garante: “É uma família muito unida. Eles se amam muito”, afirma.
Se alguém tiver notícias de Élson Batista de Aniceto, ligue para (61) 3371 3213.
Fonte: Correio Braziliense de 11 e 12/09/08, Rede Record e Jornal Local de 12/09/08
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