domingo, 28 de setembro de 2008

Gente por todo lado

O "boom" populacional de Brasília não estava nos traços de Lucio Costa, o urbanista que planejou a cidade. De 1980 para cá, a população brasileira cresceu 54,6%. O Distrito Federal, por sua vez, registrou, no mesmo período, um salto de 108,6%. Hoje já são quase 2,5 milhões de pessoas espremidas no DF. Se não bastasse, o Entorno também cresceu de maneira assustadora. Nos últimos sete anos, a região que engloba 19 municípios goianos e três mineiros teve a população aumentada em 16,5% — o dobro da média observada no Brasil.

Por mais que não estivesse nos planos de quem a sonhou, Brasília virou cidade grande, com todos os efeitos colaterais que esse fenômeno causa. Aos 48 anos, a capital do país continua a atrair milhares de imigrantes. E os governos que se revezaram no poder nessas quase cinco décadas não deram conta de enfrentar a situação como deveriam. Pelo contrário, acabaram em alguns casos por estimular o crescimento desordenado. “Essa situação é uma crítica direta a quem governa. O básico é investir em educação, saúde e trabalho, mas a opção tem sido distribuir lotes, alargar pistas e construir viadutos”, comentou geógrafo e pesquisador associado da
Universidade de Brasília (UnB) Aldo Paviani.

Com tanta gente chegando e vivendo no mesmo espaço, a cidade inchou. Aí faltaram renda, emprego, opções de lazer, infra-estrutura para todo mundo. Aos poucos, inevitavelmente, como em toda cidade grande, começaram a aparecer problemas como o desemprego e a violência.

A mato-grossense Marinalda Alves, 47 anos, veio para Brasília com o pai e quatro irmãos em 1972. A família alugou casa em Ceilândia e ali viveu durante 20 anos à espera de auxílio do governo. “Fizemos inscrição para ganhar lote, mas nunca chegamos nem perto de receber nada”, lembrou. Até agosto, a mulher que tem uma história parecida com a de muita gente espalhada pelo DF, vivia em um terreno no Setor dos Pioneiros, na Vila Estrutural. Certo dia, “um pessoal do governo” disse a ela que o local ficava perto de uma nascente e derrubou tudo o que conquistara em anos de trabalho. Hoje, mora em um lote deixado pelo marido: “Se não fosse essa herança, eu seria uma sem-teto.

Brasília foi dura com Marinalda como foi com Carlos. O homem que diz não se lembrar nem do próprio sobrenome pediu, há 10 anos, demissão da sorveteria onde trabalhava em Patos de Minas (MG) e se mudou para Brasília. “Eu queria viver melhor, com mais liberdade. No começo eu ficava nas cidades do Entorno, mas lá não dá para ganhar dinheiro com nada. Então, me mudei para a Esplanada e vigio carros”, contou Carlos, que mora na rua e ganha cerca R$ 30 por dia como flanelinha. “Gasto tudo com picolé e comida. Não quero emprego, não quero casa, nem nada do governo. Só viver minha vida sem atrapalhar ninguém”, comentou.

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) este mês mostraram, por exemplo, que a taxa de desemprego no DF está em 11,8%, contra 8,2% da média nacional. Na área da educação, a evasão escolar aumentou e o analfabetismo continua: 129 mil moradores do DF não sabem ler nem escrever. Brasília não é uma cidade blindada, não está livre das mazelas sociais. A série de reportagens que o Correio publica desde quarta-feira é mais uma mostra disso.

Os meninos e meninas que caíram na armadilha da exploração sexual infantil e do consumo de drogas na Rodoviária do Plano Piloto são de cidades do DF e do Entorno. O crescimento desordenado da região tem sua parcela de culpa pela situação a que chegaram essas crianças e adolescentes. A opinião de especialistas ouvidos pelo Correio é de que a vergonha no coração da capital federal revela a falta de cuidado com que os governos encararam o crescimento populacional. Agora, acreditam eles, é preciso correr contra o tempo, mas com um pensamento a médio e longo prazo.

O que precisa ficar claro, segundo a professora da Universidade de Brasília (UnB) Ana Maria Nogales, é que o imigrante, freqüentemente, acaba injustiçado nessa história. Brasília oferece boas oportunidades. Por isso, ainda atrai pessoas. “O problema não está na população de imigrantes. Está na falta de estrutura para recebê-los”, ressaltou Ana Maria, doutora em demografia e coordenadora do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais da UnB. “A educação é o segredo. Quanto mais educação, menos desemprego, menos criminalidade”, opinou a presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no DF, Estefânia Viveiros.

Quando a cearense Tereza de Souza, 48 anos, saiu de Fortaleza, aos 14 anos, com o primeiro grau incompleto e recém-casada, ela e o marido queriam emprego e casa própria. Ao chegar à capital federal, ela encontrou uma realidade bem diferente da que esperava. “Nunca tive facilidade. Não consegui emprego com carteira assinada nem lugar para morar”, contou a mulher, que se separou do marido há 10 anos e foi morar na Estrutural. Para sustentar os quatro filhos, vende brincos e água em frente à Catedral Metropolitana de Brasília. “Tem dia que dá para tirar até R$ 40, mas é raro. A vida aqui não é boa. Se eu pudesse, voltava hoje mesmo para minha terra”, disse.

A vida da baiana Aurinda Maria de Jesus, 44 anos, também não é simples. Ela sai da casa onde vive, em Luziânia (GO), todos os dias às 6h para ir a Taguatinga. Vende chapéus e guarda-chuvas no centro da cidade, em uma banca improvisada, e só volta para Goiás no fim da tarde. “Procurei trabalho em vários lugares, mas sempre me chamavam de velha e diziam que não tinham lugar para mim. Agora me viro como posso”, relatou. “Em Luziânia não vendo nada, se vendo é fiado. Assim, não consigo nem comer. Venho para o Distrito Federal para poder viver, aqui as pessoas compram mais.”

Durante muito tempo, Brasília sustentou o título de “ilha da fantasia”. “Pode até continuar sendo, mas é uma ilha para muito poucos”, disse o superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no DF, Alfredo Gastal.

“Isso já acabou. A ‘ilha da fantasia’ era um sonho que virou pesadelo”, emendou o presidente da Comissão de Direitos Sociais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), André Macarini. Mas experimente dizer isso para quem está no governo%u2026 “Se o sonho acabar, acaba a vida”, afirmou a secretária de Desenvolvimento Social e Trabalho do DF, Eliana Pedrosa.


Fonte: Correio Braziliense

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