domingo, 9 de agosto de 2009

A história de Verônica

Esta é a história de um amor incondicional. E de como esse amor pode transformar. Faz gente que perdeu a voz voltar a falar. Quem não mais sorria gargalhar. Quem não sabia abraçar ou beijar a estender a mão. Quem tinha medo a confiar. Confiar muito. Esta história é feita de pedaços e reconstrução. E de vida. Uma vida cheia de cicatrizes, espalhadas pelo corpo e tatuadas na alma. O laudo, assinado por um pediatra do Hospital Regional de Taguatinga (HRT), apontava: “Síndrome da criança espancada, evidenciada pelos sinais de fratura nas radiografias”. Estamos em agosto de 1999.

Na ala da pediatria, uma menina de 4 anos, com desnutrição grave, chora. Tem medo, febre e sente dores. As duas pernas estão fraturadas. Espera por uma cirurgia para corrigir um problema congênito: luxação dos quadris. A mãe biológica alegava à época que, na gravidez, tinha sido muito espancada pelo companheiro. Já grandinha, perto dos 3 anos, a menina teria caído do sofá. Na queda, houve fratura nas pernas já comprometidas.

Levada pela mãe ao Hospital de Base (HBDF) — 10 dias depois da suposta queda —, a menina chegou visivelmente traumatizada. Uma assistente social, suspeitando da história mal contada, enviou um relatório à Vara da Infância e da Juventude (VIJ), detalhando o estado de saúde da pequena paciente. O juiz imediatamente interveio. Depois de receber alta, a menina foi levada para um abrigo em Taguatinga, onde crianças e adolescentes vítimas de abandono, negligência e maus-tratos tentavam refazer seus fiapos de vidas.

Voltemos a setembro de 1999. No HRT, A menina de olhos expressivos e muito tristes esperava a cirurgia para suas pernas. O medo era maior do que a dor. De tanto trauma, ela silenciou. Desaprendeu a falar. Aprendeu a confiar apenas num ursinho de pelúcia que ganhou das enfermeiras. Ele era o único objeto no qual ela tocava. Ele jamais iria agredi-la. Nunca a maltrataria. Ele sabia de todos seus segredos e seus medos. Dormia ao lado dela naquela cama de hospital. Com ele, ela deixou de ter tanto medo do escuro.

No HRT, Verônica foi submetida a sete cirurgias. No abrigo em Taguatinga, uma voluntária soube da história daquela menina. Comoveu-se com tudo que lhe contaram. Maria Alice de Camargo — então com 32 anos, casada, moradora de Ceilândia, um casal de filhos biológicos e uma menininha recém-adotada que ainda nem andava — interessou-se pela guarda de Verônica. Mas tudo era incerto. E quase improvável de acontecer. Verônica tinha mãe e a Justiça tentaria todas as prerrogativas para que ela voltasse à família biológica.

No hospital, a mãe, que morava em Santo Antônio do Descoberto (GO), nunca a visitou. Afastava-se a cada dia. Nenhuma tentativa das assistentes sociais deu certo. Verônica voltou para o abrigo. Tinha 4 anos e uma deficiência nas pernas que nunca a deixaria andar normalmente. As sequelas emocionais eram imprevisíveis. Estava fadada a crescer e chegar à maioridade naquela instituição. Criança assim não está no perfil de nenhum pretendente à adoção.

Mas Maria Alice não desistiu. O processo de Verônica corria. Frustradas todas as tentativas de juntar mãe e filha — ou qualquer outro parente —, a VIJ decidiu que Verônica seguiria para adoção. Maria Alice estava lá, lutando para ficar com a menina. “Foi amor à primeira vista. Quando eu vi a Verônica, senti que era minha filha”, ela diz. Primeiro veio a guarda provisória. Verônica foi para a casa daquela mulher que só lhe prometeu dar amor. Conheceu os irmãos — um menino de 10 anos e duas meninas, de 8 e 1 ano.

Aos 4 anos e meio, reaprendeu a falar. Chamou pela primeira vez aquela mulher de mãe. Aquele homem de pai. A voz era quase inaudível, muito trêmula. Aos 5 anos, em 16 de agosto de 2000, o primeiro aniversário com a nova família, na casa humilde em Ceilândia. Teve doce, refrigerante, balão e até cantaram parabéns. A menina sorriu pela primeira vez. A vida seguia. A família estava completa. A adoção permanente se aproximava. Iria ganhar outro sobrenome. Passaria a se chamar Verônica de Camargo Miranda. Renasceria.




Meses depois, quando tudo era só alegria, Verônica começou a ter graves problemas renais. Os médicos nunca descobriram a origem. Os rins da menina paravam aos poucos. Começava a rotina de exames e peregrinação para o HBDF. Depois, as sessões de hemodiálise. A espera de um rim na fila nacional dos renais crônicos. E o maior drama: não poder mais beber água. Verônica teve, aos 6 anos, que suportar a dor de sentir sede e permanecer longe de qualquer coisa que a saciasse.

O corpo definhava. Cirurgias para troca de cateter. Aos 6 anos, pela perda da função renal, a menina também se descobriu hipertensa. O quadro só agravava. As internações eram constantes. Maria Alice abriu mão de tudo para cuidar da filha. Por duas vezes, os médicos a desenganaram. A mãe biológica, depois de muita procura da mãe adotiva, apareceu. Foi ver a filha no HBDF. Não a tocou. Não a beijou, sequer chamou-a de filha.

Ainda assim, aceitou se submeter a todos os exames para atestar a compatibilidade para uma possível doação. Os exames deram positivo. Ela poderia ser a doadora. Na última hora, porém, a mãe desistiu. E desapareceu. Soube-se, tempos depois, que também estava com grave problema renal, fazia hemodiálise e esperava desesperadamente por um rim.

Por meio do Tratamento Fora de Domicílio (TFD), da Secretaria de Saúde, Verônica passou a ser atendida em Porto Alegre, referência em transplante renal infantil no país. As viagens passaram a ser mensais. Em outubro de 2007, o rim finalmente chegou. Verônica recebeu o órgão. Foi como se tivesse renascido. Não houve rejeição. Recuperou-se no hospital da capital gaúcha. Retornou a Brasília. Faz acompanhamento a cada três meses. Toma, todos os dias, 11 comprimidos — remédios que evitam a rejeição do órgão, vitaminas e suplementos.

Voltou à escola, agora um simpático colégio particular em Ceilândia Norte. Está na 3ª série. Tem sentido alguma dificuldade para acompanhar as matérias, mas a professora faz um trabalho diferenciado do conteúdo com ela. A diretora, Luzinete Valeriano Fonseca, confirma: “Verônica foi bem acolhida. Todo mundo que protegê-la. Quando não vem, as crianças logo ficam preocupadas”.

Domingo que vem, 16, a menina que venceu a morte completará 14 anos. No auge da adolescência, caminha com ajuda de um andador, que lhe dá mais equilíbrio. Mas só na escola. Em casa, nem quer saber dele. Maria Alice, hoje aos 42 anos, casou-se pela segunda vez com um auxiliar de serviços gerais. Cuida, na própria casa, dos filhos de domésticas e diaristas que trabalham fora. É de onde tira parte do sustento da família. Virou avó e ama Verônica como se fosse o primeiro dia.





Pela infância que lhe roubaram nos oito anos em que viveu em hospitais, Verônica ainda tem muito de menina. Adora desenhos animados na televisão, brincar em parquinhos de diversão e ouvir historinhas de faz de conta. Sobretudo se tem final alegre onde todos viveram felizes para sempre. “Ela está voltando à fase que pulou, que não deixaram ela viver”, deduz Maria Alice, sempre atenta.

Quando o lado menina-moça aflora, gosta de se ver no espelho. Enfeita-se com fivelas e passa brilho nos lábios. Mas a timidez lhe é desconcertante. Gostou, ano passado, na antiga escola, de um menino de olhos azuis. Tremia ao vê-lo. Tudo que ele fazia, corria para contar à mãe. No quarto da menina adolescente, quase tudo é rosa. Do pente à fivela. Ali, junto com seus ursinhos de pelúcia, ela construiu seu mundo. Guardou os segredos. Escondeu a dor e sonha com o futuro. Pergunto o que ela quer ser quando crescer. Com a voz miudinha, ela devolve, para espanto até da mãe, que não sabia do desejo da filha: “Vou ser médica, pra cuidar de outras crianças”.

Comovida, Maria Alice desabafa: “Olho pra ela e vejo a luta que travamos, a vitória e Deus, como prova de tudo isso”. Verônica escuta e finge não escutar. Volta-se ao seu espelho, o confidente dos seus sonhos da criança que quer crescer. Acha-se bonita. Sorri, ainda meio timidamente, mas é assim que começam os primeiros sorrisos, sobretudo para quem muito chorou. E as chances de viver eram quase nenhuma. Naquela casa de Ceilândia, escreve-se uma história de amor onde os personagens são feitos da melhor parte do ser humano: a generosidade. Em tempo: hoje, Verônica faz o que mais gosta de fazer: bebe quantos copos d’água desejar. Farta-se deles. Saboreia. Inunda-se. Esse lhe é um prazer imensurável. Como viver.



Fonte: Correio Braziliense

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