quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Estão levando os livros

No livro O nome da rosa, do escritor italiano Umberto Eco, um monge franciscano e seu pupilo se embrenham num intrincado quebra-cabeça na tentativa de solucionar estranhas mortes num remoto mosteiro no norte da Itália. Por trás dos crimes, a descoberta de uma rica e milenar biblioteca, retentora de raros e reveladores livros escritos pelos maiores sábios até então. Adaptado para o cinema pelo diretor francês Jean-Jacques Annaud, a obra é uma homenagem ao poder de transformação que um livro tem ao longo do tempo. Nos últimos anos, Brasília tem visto esse poder quase transcendente ser maculado por uma triste realidade: o mercado paralelo de livros roubados. As principais vítimas são as bibliotecas.

Segundo a diretora da Biblioteca da UnB, Sely Maria de Souza Costa, o caso existe e é sério. Dono de um acervo que reúne mais de 1 milhão e meio de títulos entre livros, revistas e obras raras, um dos maiores centros de ensino do país sofre tentativas frequentes de furtos. “Trata-se de um problema lamentável e não se restringe apenas ao roubo de livros. Há também outro fator, que é a mutilação. É uma questão mundial e até existem dissertações de doutorado sobre o tema”, observa. “Aqui na UnB não é diferente. Os livros são furtados e saem pela porta da frente. E o triste é que qualquer um faz isso. A pessoa pode ser milionária, ter todas as condições para comprar um livro, mas comete o crime. Falta educação, ética até. Algo que só a psicologia explica”, lamenta.

Geralmente, o fruto desses roubos esbarra em motivos “profissionais”, já que a maioria dos crimes envolve publicações didáticas. “Livros de medicina e direito são muito caros. Portanto, bastante visados, daí a motivação para o roubo”, destaca Sely Maria, há quatro meses à frente da diretoria da Biblioteca da UnB.

Em grande parte dos casos, o destino das obras é o mercado informal, como bancas alternativas montadas em pontos estratégicos ou em bares da cidade. Nos dois casos é fácil identificar livros com carimbos de alguma biblioteca. Uma simples noitada num boteco qualquer da cidade, por exemplo, é mais do que suficiente para se deparar com títulos surrupiados da UnB ou da Biblioteca Demonstrativa. Clássicos da literatura são comercializados no mercado negro dos livros a preços módicos que vão de R$ 5 a R$ 7. Às vezes até menos. “Quem compra vira receptador, está incentivando o crime”, chama a atenção Conceição Moreira Salles, há 26 anos diretora da Biblioteca Demonstrativa de Brasília (BDB). “O certo é entreter o sujeito, enquanto o colega do lado dá um jeito de chamar a polícia”, defende Sely Maria, da UnB.

Estripador

Os métodos usados pelos larápios do saber são diversos. Vão desde a simples raspagem do carimbo que identifica a procedência do livro, passando pela página retirada, até a mutilação total do material, numa técnica sofisticada que mataria de inveja Jack, o Estripador. “Já encontramos casos de só ter a capa do livro na estante. Eles cortam o miolo da obra e deixam o restante no lugar. Isso é comum com livros de capa dura”, detalha Sely.

Na Biblioteca Demonstrativa, os furtos diminuíram significamente depois da instalação de câmeras em várias partes da instituição. “Em 90%, mas ainda há algumas tentativas porque não podemos colocar câmeras nos banheiros. Um problema comum aqui é a não devolução dos livros. A pessoa pega e ‘esquece’ de devolver. Para mim, isso configura roubo”, reage Conceição Moreira.

Outra vítima dos ladrões de livros na cidade é Luiz Amorim, dono do açougue T-Bone e idealizador do democrático projeto da biblioteca do povo. “Muita gente já me contou que viu livros com o carimbo do T-Bone sendo vendidos pelas ruas”, conta Amorim. “Às vezes o sujeito está até passando fome e rouba para suprir aquela necessidade, mas sei lá, dá um outro jeito. O que não pode é tirar o direito de outra pessoa de ter acesso ao livro”, destaca.

Dono de um quiosque de livros usados no Conic, Ivan da Presença abomina a prática e não se deixa intimidar pelos oportunistas. “Volta e meia chega um camarada aqui com uma sacola cheia de livros, todos do T-Bone ou da UnB. Dou-lhe um esculacho na hora, confisco a sacola e mando ele tomar um rumo senão chamo a polícia. O que não pode é deixar esses malandros denegrir um projeto tão bacana como esse (do T-Bone), por exemplo.”

Alvos

UnB
Com um acervo de mais de 1,5 milhão de títulos, alguns raros, a Biblioteca da UnB recebe em média cerca 4 mil pessoas por dia. A segurança do local se restringe apenas a grades nas janelas, vigilantes nas saídas e guaritas de identificação de códigos de barras. Até o fim do ano a instituição será equipada com câmeras.

Biblioteca Demonstrativa
Há mais de três anos que a Demonstrativa conta com sistema de câmeras e guaritas de identificação de código de barras. O número de furtos diminuiu em 90%, mas ainda há aqueles que se aventuram na prática. O acervo de livros do espaço gira em torno de 100 mil títulos.

Biblioteca da Ceilândia Carlos Drummond de Andrade
A situação mais crítica é da Biblioteca de Ceilândia, onde não existe nenhum dispositivo de segurança como câmeras, guaritas de identificação de códigos de barras e vigilantes.



Fonte: Correio Braziliense

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