sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Conflito com a lei

A dona de casa Francisca Pontes, 70 anos, já havia perdido dois dos vinte filhos para a violência urbana quando soube do assassinato do mais velho. O crime ocorreu sem explicações. Elinaldo Sousa Pereira, 20 anos, e dois menores, de 16 e 17 anos, simplesmente decidiram que seria a hora de interromper a carreira política de Cícero Pontes, 38 anos, antes que ele pudesse se candidatar desta vez a deputado distrital, pelo PRTB.

“Tiraram um pedaço de mim que não vai voltar”, relembrou a mãe. Um ano depois do homicídio, não há preso algum. Como se não houvesse culpados. “Preso está meu filho, que nunca mais vou ver”, lamentou a dona de casa.

Assim como Francisca, dezenas de mães perdem diariamente seus filhos para a violência. Os jovens conhecem cada vez mais cedo a criminalidade e dificilmente conseguem deixá-la. Pesquisa encomendada pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) aponta que os adolescentes são responsáveis por 10% dos crimes cometidos no DF - 8% são homicídios. Os números se tornam preocupantes quando se observa a reincidência em 80% dos casos. No Brasil, os jovens assumem 1% dos atos infracionais, dos quais 0,2% são contra a vida.

Outro dado do MPDFT mostra que, até 2005, 178 menores morreram enquanto cumpriam medidas socioeducativas. Atualmente, cerca de 610 jovens estão distribuídos nos quatro centros de internação do DF. Todos com perfil semelhante.

Dos adolescentes ouvidos pela Promotoria de Defesa da Infância e Juventude, entre 2007 e 2008, 56% estavam fora das salas de aula. Neste público estão inseridos os menores com infrações mais greves, como furtos, roubos, tráfico, uso de drogas, porte ilegal de armas e crimes contra a vida. Os 43% que frequentam escola geralmente cometem atos de cunho ofensivo, tais como ameaça, injúria, lesão corporal e pichação.

De acordo com a Secretaria de Justiça do DF, a maioria desses adolescentes só tem o primeiro grau incompleto ou são analfabetos. O apoio familiar também não é satisfatório. Grande parte deles se espelha em maus exemplos entre os parentes, que se sustentam em subempregos, usam drogas ou cometem atos violentos dentro de casa. Outros, sequer conhecem seus parentes.





Ao tentar buscar a raiz do problema, a resposta é sempre a mesma: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O documento estabelece que o jovem em conflito com a lei deve ser submetido a medidas sócio-educativas. Para determiná-las, o juiz tem três opções: a internação provisória de 45 dias, semiliberdade, em que o infrator é liberado nos fins de semana, ou liberdade assistida em um dos 14 centros de reintegração social existentes no Distrito Federal. As duas últimas penalidades têm o prazo máximo de três anos.

Aqueles que lidam com a questão rotineiramente garantem que essas medidas são insuficientes e atrapalham na hora de lidar com o adolescente transgressor. “Não reeduca, não inibe, não corrige. Esses centros são escolas para eles. Muitas vezes saem piores. Matam de novo, roubam de novo e a gente sente que (ao prendê-los) está enxugando gelo”, comentou o delegado da 30ª Delegacia de Polícia, de São Sebastião, José Carlos.

Para ele, o ponto é que, no Brasil, os jovens agem com a certeza da impunidade, pois sabem que a legislação os protegem de punições severas. O delegado ainda compara as penalidades brasileiras com as americanas, nas quais um adolescente pode pegar até pena de morte. “Não interessa a omissão do estado nas políticas públicas. O menor infrator tem que ser tratado como criminoso, como alguém que tirou uma vida. Senão a sociedade fica refém. A legislação tem que mudar”, declarou José Carlos.

Quem já sofreu na pele a ação de um adolescente em conflito com a lei concorda com o delegado. Ivanni Alves dos Santos nunca havia participado de debates sobre a maior idade penal, até que Everton da Silva Lima, 18 anos, e dois menores tiraram a vida de sua filha, Alessandra dos Santos Lima, e do namorado da garota, Alessandro Melo Rodrigues, ambos com 15 anos. Um dos menores assumiu os dez disparos. “Foram adultos para pegar em uma arma. Agora que sejam adultos para pagar”, disse a mãe da menina.

O crime ocorreu em março de 2008. Na época, a ficha policial de Everton trazia também precedentes de porte ilegal de arma e tráfico de droga quando ainda era menor de idade. Ainda assim, os três envolvidos foram liberados pela Justiça. O prejuízo ficou mesmo para Ivanni. De sua família restou apenas a filha mais velha, portadora de doença mental. “Minha geração acabou ali. Não terei netos, minha filha não terá sobrinhos. Nada”, lamentou Ivanni.

Hoje, a foto de Alessandra na geladeira é a única marca de que a garota esteve ali. “Às vezes, prefiro pensar que ela está na Bahia com a avó e que vai chegar de férias a qualquer momento”, contou Ivanni.




Enquanto se arrastam os debates sobre responsabilidades, omissões e legislação, menores em conflito com a lei simplesmente agem. Quando se tem 16 anos, as consequências não vêm à cabeça com tanta frequência. “Atirei para o lado dele, se pegou eu não sei”, relatou um menor infrator. Na rua, não há lei. É cada um por si e todos em nome do prazer momentâneo, esse é quase sempre o contexto dos adolescentes.

Para muitos abandonarem a vida de crimes, bastaria uma oportunidade para se inserir na sociedade, o que baixaria o índice de criminalidade. “Eu quero ajuda. Se tivesse alguma coisa para fazer no meu tempo livre eu sairia dessa vida”, desabafou o rapaz de cabelos arrepiados. Para outros, não importam as condições financeira, cometeriam crimes do mesmo jeito se alguém mexer com um de seus amigos. Os que estão no mundo do crime sabem bem como funcionam as leis, mas não se assustam. “Eles vão para o Caje como se fosse uma colônia de férias. Alguns, vão se esconder da família da vítima. Mas 45 dias não dá nada, não, e ninguém fica três anos”, comentam. “Os maiores não matam mais ninguém. Mandam os meninos matarem.”

Os adolescentes admitem serem protegidos pela lei e se aproveitam dela. Mesmo com pouca idade, se consideram capazes de fazer escolhas. “Desde os 12 anos a pessoa já sabe o que quer. Mesmo drogado, o moleque sabe do perigo. Entra nessa vida porque quer”, disse um menor de 16 anos.

O socorro, segundo eles, poderia vir da própria sociedade, apenas não discriminando o menor. “A sociedade se afasta da miséria por ela mesma criada”, declarou o mais falante. Ele disse que o Estado deveria oferecer alternativas realmente educativas e lhes dar a chance de sonhar com uma profissão, família e de deixar o mundo das drogas, como deseja um jovem grafiteiro do Setor Leste.

Foi com esse mesmo sonho que Antônia da Silva viu seu filho morrer. Marcelo Henrique da Silva conhecia o crime de perto e começou cedo. Aos 12 anos conheceu o Caje. Aos 16 já havia passado por lá três vezes. Só conseguiu deixar as ruas quando um rival de gangue decidiu que era a hora dele partir.

“No ritmo que ele estava eu já imaginava o que iria acontecer. Nesta vida só há duas opções: cadeia ou cemitério”, disse Antônia. “Queria ele aqui, mas de outro jeito. Desde que saiu para a rua eu não conseguia mais controlá-lo. Se estivesse aqui, minha situação estaria pior porque ele estaria foragido.” Entre a posição de mãe da vítima e mãe do autor, Antônia não sabe qual a pior situação. Admite que ambas são desesperadoras. Hoje, a mãe do ex-interno se une às centenas de mulheres que choram diariamente por perder o filho para a violência da qual o menino fazia parte.






Ao contrário do que pensam as vítimas da impunidade, aqueles que defendem as leis garantem que o problema não está no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas sim no Estado, por descumprir o documento no que diz respeito aos direitos fundamentais como educação, saúde, cultura, lazer, alimentação e moradia, pensa o promotor-chefe de Defesa da Infância e da Juventude, Renato Barão Varalda.

Segundo ele, na maioria dos casos, o governo só chega à população de baixa renda por meio da segurança pública, que, por vezes, é tão ineficaz quanto outras políticas sociais. “Se o juiz/Estado aplica uma medida socioeducativa e o Poder Executivo não fornece meios adequados para o seu cumprimento, a mensagem que passa é de que nem a sua família nem o Estado tiveram a capacidade de detê-los na empreitada infracional”, disse Varalda. “Ao deixar de responsabilizar o jovem de forma adequada, o Estado incentiva a sua permanência no meio infracional.”

De acordo com Varalda, as mudanças no documento de proteção à criança no que tange a menor idade penal, são desnecessárias, pois a Constituição Federal entende que os jovens entre 12 e 18 anos estão em processo de formação de personalidade. Para Varalda, o fato de o adolescente ganhar o direito ao voto aos 16 anos não significa que ele tenha consciência dos atos que pratica, já que muitos sequer têm acesso à informação de cunho educacional.

“Entendo que a redução da idade penal atingirá, sobretudo, os adolescentes que são vítimas de um sistema de exclusão social e sofrem com a miséria e o abandono. A grande maioria dos adolescentes infratores é oriunda das camadas menos privilegiadas, cuja situação socioeconômica precária, aliada à conturbada estrutura familiar reduz a criança em vítimas de um sistema social que as conduz a práticas de atos infracionais”, analisa o promotor-chefe de Defesa da Infância e da Juventude.

Os crimes cometidos pela minoria, ou seja, classe média e alta, Varalda classificou como exceções. A legislação americana, lembrada pelo delegado da 30ª Delegacia de Polícia, de São Sebastião, José Carlos, também soa para Renato Barão Varalda um tanto quanto absurda.




Cícero Pontes era líder comunitário em São Sebastião. Ele havia concorrido tanto à Câmara Legislativa quanto à Federal e estava bem posicionado para 2010. O rapaz comemorava a graduação em Relações Internacionais em uma lanchonete no shopping Pátio Brasil, quando foi abordado por Elinaldo Sousa Pereira e dois menores. Após um breve diálogo Cícero foi atingido por uma bala no abdômen. O líder comunitário tentou chegar ao hospital, mas perdeu o controle do carro e bateu em uma árvore. Os autores fugiram sem levar nada. Um dos adolescentes assumiu o disparo. Nenhum permaneceu preso.




Quando sonhava em ser dançarina de funk, Alessandra dos Santos Lima começou um namoro com Alessandro Melo Rodrigues. A mãe da garota sabia que o pretendente se envolvia com coisas um pouco estranhas, mas resolveu atender ao pedido da filha, que jurava morrer caso acontecesse algo com o namorado enquanto ela estivesse na Bahia com a avó. De volta a Brasília, a menina acompanhou Alessandro a uma festa de amigos. Enquanto conversam, Everton da Silva Lima, 18 anos, e dois menores passaram de bicicleta na porta da residência do colega e dispararam dez tiros contra o casal. Um dos menores assumiu o crime. Nenhum permaneceu preso.





Para Antônia da Silva, o filho era um companheiro excelente. Carinhoso, Marcelo Henrique da Silva sempre dispensava muita atenção à mãe. Nas ruas, o menino era outro. Após três passagens pelo Caje, Marcelo resolver que seria melhor morar sozinho. Sem ninguém para o aconselhar ele seria mais livre. A liberdade durou quatro meses até que, em agosto do ano passado, dois adolescentes, de 14 e 17 anos, que tinham rixa com Marcelo, dispararam três tiros no rapaz, na esquina da casa dele. O filho de Antônia morreu na hora. Ninguém permaneceu preso.



Fonte: Tribuna do Brasil

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