domingo, 15 de fevereiro de 2009

Canto desafinado

Na Casa do Cantador, há muito o público se misturou ao privado. O espaço em Ceilândia, em vez de servir de palco para as tradicionais cantorias e repentes, aos poucos ganhou papel de protagonista em enredo insólito, povoado por “protetores da cultura popular”, disputas de poder e jogos de interesses e capaz de pôr abaixo o mais elaborado dos folhetins de cordel. Parte dessa história já é conhecida na cidade e por artistas de fora que costumam participar dos festivais promovidos pelo Movimento Brasileiro de Cordel (MBC) naquele espaço. O último deles — o Festival Popular de Cantadores, Repentistas, Campeões da Arte do Improviso ao Som da Viola, Poetas Cordelistas, Coquistas, Emboladores e Sanfoneiros —, em 30 e 31 de janeiro, foi alvo de novas denúncias por possível desvio de recursos: por meio de recibos assinados em branco, estariam sendo feitos pagamentos inferiores aos informados na prestação de contas ou no plano de trabalho.

Em 2005, provocado por denúncias semelhantes, o Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) constatou irregularidades na prestação de contas do MBC (referente ao 37º e ao 38ª Festival Nacional dos Cantadores Repentistas e Poetas Cordelistas na Ceilândia) e do presidente, Gonçalo Gonçalves Bezerra. O MBC foi condenado a restituir aos cofres públicos R$ 44.302,47, que estão sendo cobrados judicialmente.

Entre os participantes do último festival, entrevistados pelo Correio — uma dupla de repentistas e uma de emboladores de coco, ambos do DF, três artistas de São Paulo e um do Nordeste — afirmaram ter recebido quantia menor que a devida ou assinado recibo em branco. O projeto foi realizado com recursos do Ministério da Cultura (MinC), que liberou R$ 188.500 para o MBC, por meio do Fundo Nacional de Cultura. No plano de trabalho apresentado ao Minc, Bezerra (pai da atual diretora da Casa do Cantador, Rosália Alves Bezerra) comprometeu-se a pagar cachê de R$ 4 mil para cada dupla de fora do DF, R$ 3 mil para as da cidade, R$ 4 mil para cada cordelista de outros estados e R$ 8 mil para cada grupo de sanfoneiros. Os entrevistados garantem que essas quantias não chegaram às suas mãos.

“Pelo dinheiro que seria destinado ao cantador repentista, a gente se sentiu um pouco lesado. O cachê prometido foi de R$ 1.500 para a dupla. No dia, baixou para R$ 400. Para o meu pouco entendimento, assinei um recibo em branco. Isso é uma coisa que revolta a categoria. A Casa foi feita para o cantador, mas não tem nada a ver com isso. Ali acontece lavagem de dinheiro. Aconteceu na outra gestão e nesta também. Isso precisa ser levado ao Ministério Público. (…) Um cantador do Ceará, o Jorge Macedo, disse que uma jornalista tinha ligado para ele perguntando sobre esse assunto. Ele ficou com receio que fosse alguém da família do Gonçalo e teve medo de dizer a verdade”, afirma o repentista Geraldo Queiroga, do DF.

O companheiro dele de cantoria, Antônio Noberto, confirma. “O festival não foi bom porque sai uma imensidão de dinheiro para a Casa do Cantador, mas não é repassada para os cantores de Brasília. Recebemos R$ 400 cada e nunca nos deram recibo. Desde 1996, eu canto lá e sempre nessas condições. Por isso, a gente nunca correu atrás de nada. Os recibos são todos em branco, nem o total que a gente recebe eles colocam. Em 2007, fizeram um festival em novembro, que custou aproximadamente R$ 40 mil, mas pagaram R$ 500 para cada cantador. Deu novela, fomos para a delegacia da Ceilândia”, relata Noberto. Os emboladores de coco Terezinha e Roque José garantem: “Recebemos R$ 400 cada um e assinamos o papel em branco”.

Por morar em São Paulo, a dupla Orlando Dias e Zé Cândido recebeu um pouco mais: R$ 700 cada. Orlando acredita ter assinado o recibo em branco. Já Zé Cândido não se lembra. “É uma falha assinar um papel sem ler. Pegaram meu CPF, meu RG, e eu assinei”, recorda-se. Orlando ficou hospedado num hotel em Taguatinga. Ele conta que passou duas noites num quarto que dividiu com outro cantador. Tinha frigobar, mas não ar-condicionado. No plano de trabalho submetido ao MinC para aprovação do projeto, consta previsão de pagamento de três diárias para 75 pessoas em apartamento para solteiro, standard, com ar-condicionado.




Esse último festival — em comemoração ao aniversário dos 22 anos da Casa do Cantador — deveria ter ocorrido em novembro de 2008. O projeto ainda estava em fase de aprovação quando chegaram ao MinC denúncias sobre possíveis irregularidades semelhantes às publicadas pelo Correio em junho de 2000 (leia abaixo). O denunciante, João de Souza Gouveia (de nome artístico João Bernardo, hoje morando em São Paulo), foi um dos entrevistados na época. Em razão disso, a tramitação do projeto no MinC chegou a ser interrompida enquanto o caso era analisado. No entanto, no fim de novembro, João Bernardo encaminhou nova carta ao MinC retirando a queixa e alegando ter sido induzido por outros dois cantadores do DF — Francisco de Assis Silva (Chico de Assis) e Manoel de Souza Rodrigues (conhecido como Neilton Rodrigues ou Zé do Cerrado) —, que fazem oposição a Gonçalo e à atual gestão da Casa do Cantador.

“Os repentistas ficaram sabendo que o festival não iria acontecer por causa da minha denúncia e começaram a me pressionar. Recebia ligação 24 horas por dia e ameaças. Estava sendo muito pressionado porque os cantadores têm que trabalhar. Com recibos em branco ou não, eles precisam ganhar. Para me livrar da confusão, resolvi assinar o documento de volta e fui para Brasília participar do festival e conversar com meus irmãos cantadores. Se querem resolver o problema, que seja todo mundo junto. Não é justo que eu seja o bode expiatório”, avalia João Bernardo. Ele recebeu R$ 700 pela apresentação. “O homem (Gonçalo) pagou tudo direitinho. Foram 25 duplas de São Paulo e cada cantador recebeu R$ 700”, defende.

Diante da retirada da denúncia, o MinC considerou as provas contra o MBC insuficientes e apoiou o projeto. “Toda a documentação exigida estava em dia. Além disso, a proposta é submetida a um processo técnico, em que são sugeridos ajustes e cortes e, em seguida, recebe um parecer jurídico. Cortamos R$ 20.500: R$ 13 mil destinados à coordenação geral e R$ 7.500 ao pessoal de apoio”, explica o secretário substituto da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do MinC, Ricardo Lima.

O secretário lembrou que o festival de 2008 já está cadastrado no Siconv (Sistema de Gestão de Convênios e Contrato de Repasses), para controle das transferências voluntárias da União, que permite mais eficiência, agilidade e transparência na liberação de recursos para estados, municípios e organizações não-governamentais. “Isso significa que todos os pagamentos devem ser feitos exclusivamente por crédito na conta bancária dos fornecedores e prestadores de serviços. Essas informações são dadas pelo sistema no momento em que o proponente (Gonçalo) cadastra o projeto no Siconv”, explica. O MBC tem 30 dias após a realização do evento para prestar contas.

Gonçalo Bezerra se defende. “Olha, não existe isso (de recibo em branco). O pessoal que fez isso nunca mais participa de festival meu. No Ministério da Cultura, nunca teve problema porque a gente faz tudo certo, fiscalizado por eles. Quem faz isso são cantadores que perderam a Casa do Cantador. Nós temos um processo contra os cantadores sem vergonha — desculpe-me a palavra —, que arrumaram uma denúncia mentirosa e depois desmentiram. É mentira pura porque já realizamos mais de 40 festivais aqui”, justifica.



Fonte: Correio Braziliense de 15/02/09

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