sexta-feira, 29 de maio de 2009

O sapateiro de Ceilândia

Quando a guerra acabou, recebeu o pai no cais do porto. Estava cansado em virtude da luta cruel e da longa viagem de volta. Não parecia feliz, apesar das honrarias recebidas do governo e das comemorações que o povo fazia nas ruas.

De ônibus, seguiram pelas estradas esburacadas do sertão nordestino. O pai não falava uma palavra. Só olhava a terra esturricada e os animais magros. O filho fazia alguns comentários que eram respondidos com muxoxos. Em casa, com os olhos marejados, o herói abraçou a esposa que não via há meses. Lavou o rosto na água barrenta, sentou-se no alpendre e puxou um cigarro do bolso da farda suada. Ali ficou até o escurecer, só olhando o sertão vermelho misturado no pôr do sol.

Ao amanhecer, os filhos já encontraram o pai rastelando o terreiro e fazendo afago no cachorro Tizíl. Durante dias, ninguém ouviu a voz do homem, nem os velhos amigos que apareciam para beber pinga e comer carne de sol. Era dezembro de 1945.

No início do ano seguinte, o governo mandou pagar alguns benefícios aos que foram lutar pela democracia, e Anastácio foi para a cidade em busca dos seus direitos. Abriu uma caderneta no banco e deixou o dinheiro rendendo para garantir a velhice. Voltou para a roça.

— Pai, disse Urbano, o senhor, desde que chegou, não nos contou nada sobre a guerra. Nas esquinas da cidade, juntam-se grupos de ex-combatentes para relatar os acontecimentos e as histórias de cada um. O senhor nunca fala sobre os episódios, que devem ter sido duros.

— Meu filho, a gente vive aqui nesse fim de mundo cercado de perigos. São as cobras peçonhentas, as onças famintas e os coiteiros violentos a nos atacar. Eu queria esquecer cada segundo daqueles meses em que lutei. No navio, de volta, só ouvi histórias de companheiros que assistiram à ação do soldado do lado. Contam sempre que o outro deu uma rajada de metralhadora e atingiu dois ou três inimigos que estrebucharam no chão. Na verdade, dos que entraram em combate, fica sempre, na memória, os gritos lancinantes ecoando dia e noite. Não quero falar sobre as desgraças e nem sobre o sofrimento que nos atingia. Quero encontrar um canto tranquilo para recomeçar a minha vida.

Dez anos depois dessa única conversa com o filho, Anastácio juntou tudo o que tinha e foi correr atrás do sonho de JK. No caminhão, financiado pelo governo, trouxe a família, alguns vizinhos e dois sujeitos que encontrou na estrada. Na construção da cidade, puxou areia, transportou cimento e, ao final do dia, gente aos montes. Tudo que ganhava dividia com os que mais precisavam. Os dois sujeitos, que viraram sócios, sumiram levando o caminhão e o dinheiro juntado com sacrifício.

“— E agora, o que fazer?”, choramingou a mulher. Anastácio respondeu que, em terra santa, não há dificuldade em começar de novo. Vou fazer o que fiz nos campos de guerra. Serei sapateiro, ofício que aprendi sem professores. A minha missão foi garantir que meus companheiros pudessem seguir com os pés protegidos do frio. Todos os dias, após o anoitecer, eu saía em busca de botinas ainda amarradas nos pés dos soldados estirados no chão. Era duro fazer isso, mas era a minha missão. Não matei, não feri, mas sofri muito ao deixar aqueles pobres descalços para garantir o caminhar dos meus companheiros.

No fundo de casa, abriu sua sapataria. O negócio prosperou com as pessoas o procurando para o conserto de seus calçados. O sapateiro, exímio no seu ofício, criou fama na região. No pequeno espaço, a mesa com pregos, agulhas, linhas, uma bola de sebo e pedaços de couro com o seu cheiro peculiar. Nesse canto, Anastácio passou anos a fio. Com sua simpatia e nenhuma mágoa no coração, começou a observar o caminhar dos seus fregueses. No desgaste dos calçados, sentia o modo de viver de cada um. O que pisava leve, sabia que era um sujeito manhoso, talvez vendedor ou artista. Os que gastavam a sola só de um lado, com certeza, sofriam de dores nas costas. A esses recomendava uma visita ao ortopedista, que, por acaso, era seu filho do meio, estabelecido no prédio ao lado.

Dos que chegavam com o bico da botina arranhado, percebia se tratar de sujeito nervoso, que vive tropeçando ou chutando os baldes da vida. Indicava, com discrição, uma visita à doutora Rose, filha, psicóloga conceituada que já havia resolvido problemas de muitos clientes.

Assim, com o olhar voltado para as almas das pessoas, Anastácio não errava na avaliação que fazia e criou um círculo de amizades que fez sua fama correr a capital. Até homenagem recebeu de um grupo de bailarinas que o procurou em busca de uma fórmula barata e eficaz na criação de sapatilhas de seda. Para não ficar envolvido com a arte, colocou Mariana, sua neta, para executar o trabalho. A moça, estudante de arquitetura no Ceub, adorou a experiência e já está com sua própria sapataria num shopping luxuoso. Em homenagem ao avô, recém-falecido, colocou o nome “Pés de Anjo”.


Paulo Castelo Branco


Fonte: Brasília Em Dia

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