domingo, 1 de novembro de 2009

Sem agá, nem caô

“Conceição, li sua crônica sobre a Ceilândia e não resisti. O que a Ceilândia tem? A Ceilândia hoje tem cinema, você sabia? Rap, um canto da Ceilândia, ganhador do festival de Cinema de Brasília. A Ceilândia também tem teatro, música, Terno Elétrico, Ferrock, e outras miçangas mais. A Ceilândia tem vizinhos que vão levar pão para o outro, que cuidam dos que precisam. Vigora ainda uma lei oculta de ajuda mútua, talvez originada na sobrevivência.

Mas a Ceilândia também corre risco. Há quadras em que a lei é outra. Mesmo você, que anda por aí, se assustaria percorrendo uma dessas ruas. Acho que você sabe do que falo. É triste ver aquilo. No meu tempo não era assim. Alguns lugares de Ceilândia parecem mais o Rio. Moro nessa cidade de H, mas sou ceilandense de coração. O cinema de Ceilândia está novamente em cartaz. O cineasta Queiroz, por sinal meu antigo vizinho, vai estar no Festival novamente. Evoé!

Ceilândia não tem cinema, mas faz cinema? Que país, hein? Ceilândia não tem teatro. Faz teatro. Só mesmo sendo ceilandense para entender esse orgulho. Orgulho de fazer com o nada, no seco, na força, na marra. Mas acho que aí reside a graça: fazer com o que não se tem. O ceilandense é um forte, ah se é! Posso mandar um disco do Terno Elétrico para você? Poesia eletrificada!

Bom, eu daqui, estou torcendo ainda para colocar minhas coisas para funcionar: o Armando o Coreto — utilização dos espaços desta cidade; o livro livre circulando por aí; o lixo no lugar certo. Ontem fui à 315 Sul cortar o cabelo de um dos meus catarrentos — uma amiga chamava os filhos dela assim, carinhosamente. Pois bem, mesmo aqui, alta renda per capita, vejo o lixo na calçada. Poste seus olhos no chão. Ao lado da Mercedes, o copo de água jogado.

Ande por aí e anote, mesmo que mentalmente, o que enxergar. Depois me conte. Não podemos, Conceição, chegar em outro nível de humanidade se continuarmos fazendo isso. Jogamos papel na rua, mais tarde jogaremos colchão velho no Paranoá, e por aí vai. Eis minha campanha solitária como você, Quixote contra Sancho, sonho contra realidade.

Vamos espalhar pela cidade a seguinte pergunta: Por que você joga lixo na rua? A consciência desperta, a pergunta que traz várias respostas. Já falei demais. Abraço e continue por aí, revelando o oculto. Mas o melhor mesmo, para mim, é andar como um estrangeiro. Quando faço isso, consigo entender por que, como disse o poeta, tudo aqui é construção e já é ruína. Abraço do leitor Josenilton.”


...

A carta do ceilandense de coração veio com um enigma: “cidade de H”. Ele me esclareceu o que parece óbvio, H são as duas torres do Congresso Nacional. Agá também pode ter o sentido de contar muito lero, jogar um papo, ser cheio de onda. Um agá adora um caô. Em Ceilândia, o agá não faz verão. Como diz o Josenilton, se o ceilandense quiser fazer alguma coisa que valha a pena, tem de fazer “com o nada, no seco, na força, na marra”. Sem agá e nem caô.


Conceição Freitas


Fonte: Correio Braziliense de 30/10/09

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