domingo, 8 de novembro de 2009

O arquiteto capilar

Se aquela cadeira falasse... Nela, sentou-se muita gente importante. Gente que mudou a história deste país. Era um tanto de excelência, tanto meritíssimo, tanto coronel, tanto doutor, tanta autoridade, tanto artista... Hoje, na mesma cadeira, bem longe do glamour, uma outra gente se refestela. E como se solta, como se espreguiça. Não há metáforas, nem mais nem meio mais. É um tal de Tião, Zezinho, Macalé, Mundico, Tonho, Toinho, Pedrão, Anastácio, Benedito, Chico... E o dono da cadeira diz, com sinceridade impressionante: “Aqui me sinto mais feliz. As relações são mais verdadeiras. É como se a gente fosse uma grande família. Descobri que a vida aqui é mais emocionante”.

Que história é essa? Vamos lá. Ao comecinho dela. Lá de Parnaíba, no Piauí, partiu um garoto de 14 anos, a bordo de uma velha Rural Willys. Dentro dela, o pai e a mãe do garoto e seus sete irmãos. Era dezembro de 1959. O pai, o destemido mestre de obras Francisco, catou a família e vislumbrou a possibilidade de “ser alguém” na cidade que nasceria. Foram oito dias e oito noites sacolejando dentro daquela Rural. Até que chegaram. Pararam na Vila Planalto. O mestre de obras se virou em mil. Ali mesmo, com as economias que juntou no Piauí e vendo a carência do lugar, montou um comércio e uma barbearia.

O menino de 14 anos via o pai cortar o cabelo do povo com navalha. Pediu para exercer o mesmo ofício. No ano seguinte, meses antes da inauguração (começava 1960), o pai lhe disse que era ele quem tomaria conta da barbearia. E o garoto desembestou a cortar cabelos. Com navalha e tesoura. “Aprendi tudo treinando nos cabelos dos peões”, ele conta. Brasília foi inaugurada. O menino do Piauí viu toda a festa. Da Vila Planalto, enxergava aquele mar de gente e ainda muita terra vermelha na Esplanada dos Ministérios.

Naquele mesmo dia, deu calo no dedo. O magricela nunca cortou tanto cabelo de peão querendo ir à festa do nascimento de Brasília. A festa durou o dia todo. No outro dia também. Foi festa a semana toda. A vida seguiu. O barbeiro completara 15 anos. Já era conhecido no lugar. Em 1962, mais “velho”, ele teve uma grande chance na vida: foi trabalhar na barbearia do Tribunal Federal de Recursos. “Com 17 anos, cortava o cabelo dos 13 ministros da casa”, ele lembra. E a memória não o trai: “Cortei cabelo de Cândido Lobo, Oscar Saraiva, Cunha Vasconcelos...”

Ficou ali, aparando as madeixas daquela gente de toga, durante seis anos. Em 1968, mais um convite. E seria irrecusável. Apareceu uma vaga para ser um dos barbeiros do Hotel Nacional, um dos poucos da capital. E certamente o mais elegante da época. Hospedar-se ali era sinônimo de sofisticação máxima. Coisa de rei e rainha. E lá se foi o rapaz, agora com 21 anos, para o então salão mais chique da terra de JK. Eram quatro barbeiros. Ele era o mais jovem. E foi naquele lugar que Ediberto Galisa das Chagas colocou as mãos nas cabeças mais famosas do país à época.



Primeiro, ele viu o ponto. Acertou o preço. E alugou o imóvel por R$ 350. Casado pela quinta vez, agora com a professora Joana Galisa, 53, o arquiteto capilar batizou o estabelecimento com o nome da mulher: Barbearia JG. E é ali, na QNO 5 do Setor O de Ceilândia, que há um ano e meio Ediberto abriu seu derradeiro salão. Mas ele queria a mesma cadeira do Hotel Nacional. Descobriu que ela estava numa barbearia do Setor Hoteleiro de Brasília.

Ao chegar lá, descobriu que, além da cadeira dele (reconhecida pela alavanca), havia mais uma da mesma época. Comprou cada uma por R$ 3 mil. As cadeiras têm mais de 50 anos e foram fabricadas especialmente para o Hotel Nacional. Levou-as para Ceilândia. Lá, de segunda a sábado, exerce o único ofício que conhece na vida. “Já teve gente que me ofereceu R$ 5 mil por cadeira e eu recusei”, ele diz. O corte é feito com a mesma e velha tesoura.

Hoje, o homem de 64 anos, pai de cinco filhos, avô de cinco netos, cabelos bem grisalhos, calça de risca de giz, camisa branca, sapatos pretos e meias combinando com a calça, virou barbeiro num salão modestíssimo, ao lado de uma loja que vende frango assado. O corte custa R$ 10, há uma rosa de plástico decorando o balcão (presente da mulher) e o piso é de um material emborrachado que lembra os assoalhos dos antigos salões dos anos 1960.



Para ler na íntegra, visite o site da fonte.


Fonte: Marcelo Abreu do Correio Braziliense

Nenhum comentário: