A ocupação de área pública por brasilienses sem-teto na QRN 1 de Ceilândia reafirma, mais uma vez, o destino de uma utopia deslocada, mas sempre uma utopia. Uma provocação utópica muito além daquela que está contida no projeto de Lucio Costa. Brasília estava destinada tão-somente à máquina administrativa do Estado brasileiro.
Sabemos todos que Brasília é resultado de um longo fio que se desenovelou no século 18 até que, em meados do século 20, Juscelino puxou o sonho pela ponta e deu-lhe forma concreta. A utopia inicial se realizou: o país tomou posse de si mesmo, por inteiro, litoral e interior, norte, sul, leste e oeste. A trama de fios atou o sentido de Nação.
Para os brasileiros, porém, não bastavam uma bela cidade e estradas ligando os pontos cardeais. Eles queriam um cadinho real da utopia, queriam receber o que o país estava lhes devendo desde Cabral. Impulsionados pela utopia de Juscelino, eles desceram na nova capital em levas incessantes, desde a seca nordestina de meados de 1958.
Foram os flagelados que forçaram Israel Pinheiro a apressar o surgimento da primeira cidade-satélite, Taguatinga. O Plano Piloto ainda era uma trama de riscos vermelhos no chão do cerrado, mas já estava cercado de invasões: Lanonânia, Sacolândia, Invasão do Iapi, Morro do Urubu, Vila Amaury e tantas outras. Foram os candangos da Cidade Livre que, em intensa mobilização em frente ao Congresso Nacional, conquistaram o direito de permanecer onde estão até hoje. Era preciso dar dar um lugar fixo para essa gente, sob pena de a capital da utopia ser varrida por algum tipo de reação popular— sabe-se lá qual.
Foi assim com Taguatinga, Gama, Sobradinho. Foi assim com todas as cidades-satélites pobres do Distrito Federal. Foi assim com Ceilândia, a cidade que já nasceu como a maior favela brasileira e que mereceu um poema de Carlos Drummond de Andrade:
"A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia/contemplam-se/Qual delas falará primeiro? Que tem a dizer ou a esconder uma em face da outra?/Que mágoas, que ressentimentos prestes a saltar/da goela coletiva e não se exprimem? Por que Ceilândia fere o majestoso orgulho da flórea Capital?/Por que Brasília resplancede/ante a pobreza exposta dos casebres de Ceilândia,/filhos da majestade de Brasília?/ E pensam-se, remiram-se em silêncio,/as gêmeas criações do gênio brasileiro."
Como a primeira Ceilândia, a invasão da QRN 1 também fere a majestática utopia que se pretendia destinada a poucos. Argumenta-se, desde àqueles tempos, que a cidade vai inchar, que não estrutura para abrigar tantas multidões, que se vai perder a já deteriorada qualidade de vida da capital. Para os brasileiros sem-teto, de hoje e dos anos 1950, a utopia também lhes pertence, ou deveria lhes pertencer.
Sabemos todos que Brasília é resultado de um longo fio que se desenovelou no século 18 até que, em meados do século 20, Juscelino puxou o sonho pela ponta e deu-lhe forma concreta. A utopia inicial se realizou: o país tomou posse de si mesmo, por inteiro, litoral e interior, norte, sul, leste e oeste. A trama de fios atou o sentido de Nação.
Para os brasileiros, porém, não bastavam uma bela cidade e estradas ligando os pontos cardeais. Eles queriam um cadinho real da utopia, queriam receber o que o país estava lhes devendo desde Cabral. Impulsionados pela utopia de Juscelino, eles desceram na nova capital em levas incessantes, desde a seca nordestina de meados de 1958.
Foram os flagelados que forçaram Israel Pinheiro a apressar o surgimento da primeira cidade-satélite, Taguatinga. O Plano Piloto ainda era uma trama de riscos vermelhos no chão do cerrado, mas já estava cercado de invasões: Lanonânia, Sacolândia, Invasão do Iapi, Morro do Urubu, Vila Amaury e tantas outras. Foram os candangos da Cidade Livre que, em intensa mobilização em frente ao Congresso Nacional, conquistaram o direito de permanecer onde estão até hoje. Era preciso dar dar um lugar fixo para essa gente, sob pena de a capital da utopia ser varrida por algum tipo de reação popular— sabe-se lá qual.
Foi assim com Taguatinga, Gama, Sobradinho. Foi assim com todas as cidades-satélites pobres do Distrito Federal. Foi assim com Ceilândia, a cidade que já nasceu como a maior favela brasileira e que mereceu um poema de Carlos Drummond de Andrade:
"A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia/contemplam-se/Qual delas falará primeiro? Que tem a dizer ou a esconder uma em face da outra?/Que mágoas, que ressentimentos prestes a saltar/da goela coletiva e não se exprimem? Por que Ceilândia fere o majestoso orgulho da flórea Capital?/Por que Brasília resplancede/ante a pobreza exposta dos casebres de Ceilândia,/filhos da majestade de Brasília?/ E pensam-se, remiram-se em silêncio,/as gêmeas criações do gênio brasileiro."
Como a primeira Ceilândia, a invasão da QRN 1 também fere a majestática utopia que se pretendia destinada a poucos. Argumenta-se, desde àqueles tempos, que a cidade vai inchar, que não estrutura para abrigar tantas multidões, que se vai perder a já deteriorada qualidade de vida da capital. Para os brasileiros sem-teto, de hoje e dos anos 1950, a utopia também lhes pertence, ou deveria lhes pertencer.
Conceição Freitas
Fonte: Correio Braziliense
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