sábado, 23 de outubro de 2010

Grupo Hierofante nas ruas

Na madrugada de sexta (22/10) para sábado, Ceilândia se transformará, pelo menos por alguns dias, em uma sucursal da Grécia. Mais precisamente da Grécia Antiga, com seus deuses irascíveis e seus mitos fascinantes. A cidade, casa da Hierofante Companhia de Teatro, foi escolhida como inspiração e cenário para a nova montagem do grupo, uma curiosa versão de As Bacantes, texto milenar da tradição grega. Explica-se: além de receber as encenações, todas em espaços públicos, a cidade virou parte do caldeirão em que a história original ganhou novo cozimento, ingredientes frescos e uma roupagem mais contemporânea e urbana. Bacantes e Brincantes estreia no primeiro minuto do próximo sábado, em frente ao Restaurante Comunitário de Ceilândia.

A epopeia de Dionísio e Penteu surgiu como opção cênica há anos, quando Wellington Abreu, diretor do espetáculo e integrante da companhia, soube que o governo local pretendia proibir um show dos rappers Racionais MCs em Taguatinga. “O artista não pode ser calado pela censura. Decidi montar algo que transgredisse, em tese, e questionasse esses valores”, explica. O desejo de ruptura acabou se revelando mais criativo do que a encomenda. “Pesquisamos e não encontramos nenhuma montagem de rua para As Bacantes”, afirma o ator e fundador do Hierofante Anderson Floriano, que dá vida ao rei Penteu.

Ousadia desse porte só poderia ser compartilhada com alguém que já gozasse da confiança ampla e irrestrita dos atores. E eles não tiveram dúvidas: seguiram para Fortaleza e consolidaram a sexta parceria com o dramaturgo José Mapurunga, que já adaptou e criou diversos textos para a companhia. “Descobrimos esse autor por meio de uma radionovela que um amigo nos mostrou e não o largamos mais. Ele é talentosíssimo”, elogia Abreu. A encomenda foi simples e acachapante: criar um diálogo entre a obra clássica de Eurípedes, o hip-hop, expressão máxima das ruas da cidade, e o carnaval, que encontrou sua sede local em Ceilândia.

Para surpresa de todos, o esboço chegou três dias depois. A obra definitiva, aprovada por unanimidade, ficou pronta em cerca de um mês. E traz a dosagem que o grupo esperava. Por trás da essência mantida, surge uma lufada de ar novo, brasileiro, cheio de referências irônicas aos status quo atual.

O resultado é um espetáculo de cunho mais político e menos erótico, em oposição às montagens do texto que se multiplicam mundo afora. “Não recorremos à questão sexual, pensamos na festa como um todo”, explica Floriano. “Até porque se fizéssemos nas ruas o que Zé Celso (Martinez Corrêa, célebre pela versão “orgiástica” do texto) faz, seríamos presos”, brinca o ator André Reis, intérprete de Dionísio. Eles garantem que a peça é recomendada para plateias de todas as idades.

Penteu ganhou o perfil de governante burocrata, interessado em manter a precariedade reinante em sua comunidade. “Ele representa o governo das coisas ruins, do jeitinho brasileiro, da corrupção. Já Dionísio simboliza a alegria da música, da dança”, compara o diretor. Apesar de o rei de antigamente representar a atual face do coronelismo revestida de prepotência, o ator que o interpreta, Anderson Floriano, garante que o personagem foi moldado de forma mais divertida e menos sisuda. Uma das explicações para essa flexibilidade é o fato de a tragédia grega original ter sido adaptada para a farsa, gênero teatral que faz um desvio para o burlesco, o caricatural, atado apenas ao ridículo e à diversão. “Queríamos um teatro que coubesse em uma mochila, com jeito de farsa popular e que fosse a cara de Ceilândia”, define Wellington Abreu.






As referências tupiniquins e africanas surgem na música e na dança, outro ponto marcante da montagem. No momento em que os personagens se apresentam, Dionísio diz a que veio, oferecendo uma miscelânea de referências que misturam Zé Pilintra, Rei Momo, Ogum e Oxumaré. O carnaval, a capoeira e, especialmente, o hip-hop, surgem com força, orquestrados pela experiência de Alan Jhone, ou Bboy Papel, ídolo internacional da dança break. A cena de decapitação de Penteu ocorre ao som de up rock, versão mais vigorosa do hip-hop.

Para dar vida a entidades históricas tão densas, os atores enfrentaram preparações físicas do Bboy Papel, leituras do texto, sessões de preparação de voz, além de aulas de instrumentos como zabumba, ganzá e pandeiro. Nesse período, o grupo realizou uma oficina de iniciação teatral e, de uma turma de 38 alunos, selecionou as estreantes Jéssica Cardoso e Nael Talita para interpretarem as moçoilas que dão nome à peça.

E por que uma estreia tão boêmia, invadindo a madrugada? Pura estratégia do grupo para não excluir nenhuma fatia do público-alvo. “Estrear num teatro convencional não nos permite mobilizar os bêbados e usuários de crack que circulam pelas ruas na madrugada. Quando ensaiamos nas ruas, eles se emocionam e pedem ajuda. Então, quem tem carro ou mora perto pode vir aqui. E resolvemos fazer a essa hora para chegar às pessoas que nunca assistiriam à peça”, esclarece o diretor.





Bacantes e Brincantes

Espetáculo da Hierofante Companhia de Teatro. Estreia na noite de amanhã para sábado, à 0h, em frente ao Restaurante Comunitário de Ceilândia, em Ceilândia Centro. Nos dias 23, 24, 29, 30 e 31 de outubro, sessões às 15h, em frente ao posto policial de Ceilândia Centro. Nos dias 23, 24, 30 e 31, sessões às 17h, no Teatro de Arena atrás das Casas Bahia, também no centro da cidade.

Entrada franca.
Classificação indicativa livre.



Fonte: Correio Braziliense e Ceilândia.com

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