domingo, 17 de outubro de 2010

Brasília está com depressão

Brasília tem 50 anos. Nasceu às 6h15 de 21 de abril de 1960 no Hospital São Vicente de Paula, em Taguatinga, o mesmo lugar onde hoje faz tratamento contra depressão, estresse e ansiedade. Viveu dias de princesa e tem como padrinho de batismo Juscelino Kubitschek. Participou de programas de televisão de grande audiência, do Fantástico, do Programa do Jô, do Silvio Santos, do Programa Flavio Cavalcanti. Foi entrevistada por Regina Casé. No último aniversário, passeou de helicóptero com uma repórter de televisão e recebeu a visita de um apresentador de telejornal. Mora numa casa modesta do Recanto das Emas.

A vida de Brasília sempre saltou de um extremo a outro. Quando fez 15 anos, o então governador do Distrito Federal organizou um baile no Clube Naval de Brasília para comemorar os 15 anos da cidade e do primeiro bebê nascido depois da transferência da capital. Convidou adolescentes de todo o país que tivessem nascido no mesmo dia. Vieram 26 moças. “Dancei a valsa com Elmo Serejo (o governador) e com Jair Rodriges”, lembra-se Brasília. A princesa foi sozinha à festa. O pai da debutante, Gonçalo, decretou que ninguém da família iria: “Se ninguém pode ir arrumado igual a ela, vai só ela”. O vestido de debutante, os sapatos, a maquiagem, o cabelo, tudo foi oferecido pelo Governo do Distrito Federal.

O pai de Brasília, piauiense de Regeneração, morava em Goiás quando Brasília começou a ser construída. Pensando em fazer a vida, veio vender cereais na nova capital. Trouxe dois filhos pequenos, Ribamar e Fátima. Quando a terceira filha nasceu, parecia que a família Gois iria entrar para a história. O presidente da República se ofereceu para batizar a garota nascida ao alvorecer da inauguração da capital e quis que ela fosse homônima da cidade. O padre sugeriu que se acrescentasse um “Maria” à identidade para diferenciar o nome de uma cidade do de uma garota.



Quando descobriu que se chamava Brasília Maria Costa Gois, a menina brasiliense não gostou muito da novidade. E por uma razão de criança. Todos os anos, os jornais a reuniam a Brasílio, brasiliense nascido antes da inauguração da capital. E os repórteres brincavam: “Quando você crescer, vai se casar com ele”. A garotinha se escondia debaixo da cama. Ela só queria ser menina, mas já era a representação da capital do país e já haviam lhe arranjado um marido.

Com o tempo, foi tomando gosto pelo nome que lhe fora dado. A festa de debutante abriu a porta dos sonhos. “Foi a coisa mais chique do mundo. Fui tratada como uma rainha pelo Elmo Serejo.” Em casa, o pai não conseguia amealhar patrimônio e a família passava por dificuldades. Com a morte de Gonçalo Gois, a situação se complicou. Mas, a cada 21 de abril, ela se deixa levar ao mundo encantado das homenagens, das autoridades, das celebridades e dos jornais. “Conheci muita gente importante, muita gente bacana, muita gente boa.” No dia 22, tudo volta a ser como antes.

A primeira brasiliense da capital inaugurada tem dois filhos nascidos no Hospital Regional da Ceilândia, Grazielle, de 15 anos, e Kristiano, 10. Brasília quis, e anunciou aos jornais, que a filha seria nomeada com um diminutivo da mãe, Brasilinha. “Ainda bem que ela pensou melhor”, diz hoje, rindo, a garota de olhos oblíquos e rosto expressivo. Kristiano tem K no nome em homenagem a Juscelino Kubistchek. Com menor intensidade, os dois também vivem na gangorra entre o mundo encantado que a mãe sonhou e a dura vida real. Não basta ser filho de Brasília, o primeiro bebê nascido na inauguração da cidade — é preciso apresentar documentos, senão ninguém acredita.

Na casa de esquina, sem pintura, ainda com cartazes de candidatos do PMDB, há um banner da Coca-Cola. Brasília transformou a sala num pequeno armazém onde vende bebidas, refrigerantes e salgadinhos. A afilhada de Juscelino é servidora pública lotada no Hospital Regional de Ceilândia. Preenche fichas no balcão do pronto-socorro, mas está de licença médica por conta da depressão. “A vida me decepciona. Estou tomando um mundo velho de antidepressivo, um mundo velho de calmante. Estou fazendo tratamento no Hpap (Hospital de Pronto Atendimento Psiquiátrico), só que a partir do mês que vem não sei como vai ser a minha vida.” Brasília está ansiosa porque o médico que a atendia deixou o ambulatório. “Meu remédio acaba dia 2 de novembro e vou ter que tentar uma nova fila.”





A doença do ânimo e dos sentimentos contaminou Brasília depois de uma tragédia. Em 1988, seu irmão Paulo Roberto foi atropelado por um ônibus na Estrada Parque Taguatinga (EPTG) e, levado ao Hospital de Base, ficou hora e meia numa ambulância à espera de socorro. O rapaz morreu onde estava, sem ter sido atendido. “Você perder seu irmão dentro da área em que trabalha…”, ela lamenta. O assunto mereceu notícia nos telejornais. “Eu assisti, mas não sabia que era o Paulo.”. Só depois, sob efeito de calmantes, Brasília foi informada do ocorrido.

Brasília de carne, osso e decepção diz que gosta da cidade onde nasceu. Menos pelas qualidades urbanísticas e arquitetônicas do Plano Piloto, mais pelo “calor humano” que ela sente entre os habitantes. Para ela, Brasília é todo o conjunto de cidades-satélites. “Aqui tem muito nordestino. Às vezes sou muito bem tratada por causa do nome, mas muitas vezes a pessoa me trata bem sem nem saber o meu nome.” As inconstâncias provocadas pela depressão — “tem hora que estou bem, tem hora que estou irritada, tem hora que não consigo nem levantar da cama” — fizeram com que ela perdesse documentos pessoais, cartas de Juscelino, lembranças dos momentos de glória. Restaram a memória e os 21 de abril vindouros.



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Fonte: Correio Braziliense

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