Temos telhado
Por Conceição Freitas
Não havia reparado que Brasília não tinha telhado até que um gaúcho escreveu um texto num jornal do Rio Grande e, entre as muitas críticas à capital, apontou o dedo para os tetos da cidade e acusou: em Brasília não se vê telhas sobre os prédios.
Não é que é mesmo? Se o tal gaúcho não tivesse me lembrado, eu nem sentiria falta das telhas de barro fazendo ondas acima de nossas cabeças.
Mas só fui mesmo sentir saudade dos telhados no meu novo CEP. Nele não faltam telhados coloniais e, nas casas mais novas ou recém-reformadas, a cobertura passou a ter um papel predominante na arquitetura da casa. As telhas também entraram na era tecnológica e já são fabricadas com fibrocimento, alumínio, manta asfáltica, vidro, ardósia, deixando num passado quase pré-histórico as telhas de barro moldadas nas coxas das escravas. Ficaram coloridas, as novas telhas. Brancas, azuis, verdes, prateadas.
Sigo a cordilheira de telhados do meu novo CEP e elas me conduzem a um esconderijo de criança. Era no telhado que eu ficava sozinha. Metade da casa de madeira tinha segundo pavimento, o que me concedia a outra metade do telhado onde eu acocorava para apreciar a rua. Era meu modo de voar com os pés no barro e os olhos ancorados no Rio Guamá.
Telhados são componentes indissociáveis da paisagem urbana. Telhados coloniais lembram Ouro Preto, Diamantina. Telha de barro invoca tradição, inspira segurança. Telhado é abrigo, sombra, silêncio. Telhado contém, delimita o continente, avisa ao céu que ali, naquela construção ponteaguda, há uma casa de morar.
Mas a arquitetura moderna do tempo de Brasília desprezou o telhado e convidou a cobertura para a festa. Nada de duas águas, água nenhuma, por favor. Os modernos achataram o teto das casas, colocaram lajes planas e as telhas apodreceram nas cerâmicas. Os modernos devem ter achado que telhado não tinha propriamente uma função. Pra que criar montanhas sobre as casas se um teto em linha reta, achatado, poderia muito bem cumprir o ofício de nos proteger das chuvas, dos ventos, das noites e dos sóis.
As casas sem chapéu conferem às cidades uma monótona regularidade linear. Os telhados trazem de volta a algaravia própria das cidades, propõem um jogo de diferenças, de desnivelamentos, de sobes e desces, de inclinações mais ou menos acentuadas. Há exageros de caráter ostentatório, por certo. Há também uma insuperável nostalgia brasileira de sermos um país do hemisfério norte, de neve caindo sobre os telhados fortemente inclinados para que a neve nele possa deslizar.
Um telhado na medida certa, que reverencie e respeite a seu modo, a arquitetura moderna — aquela que foi feita para acolher os brasilienses, em particular, e os brasileiros —, esse telhado dá gosto de ver e de querer um dia que ele me proteja das inconstâncias do viver.
Fonte: blog da conceicão, Correio Braziliense
Por Conceição Freitas
Não havia reparado que Brasília não tinha telhado até que um gaúcho escreveu um texto num jornal do Rio Grande e, entre as muitas críticas à capital, apontou o dedo para os tetos da cidade e acusou: em Brasília não se vê telhas sobre os prédios.
Não é que é mesmo? Se o tal gaúcho não tivesse me lembrado, eu nem sentiria falta das telhas de barro fazendo ondas acima de nossas cabeças.
Mas só fui mesmo sentir saudade dos telhados no meu novo CEP. Nele não faltam telhados coloniais e, nas casas mais novas ou recém-reformadas, a cobertura passou a ter um papel predominante na arquitetura da casa. As telhas também entraram na era tecnológica e já são fabricadas com fibrocimento, alumínio, manta asfáltica, vidro, ardósia, deixando num passado quase pré-histórico as telhas de barro moldadas nas coxas das escravas. Ficaram coloridas, as novas telhas. Brancas, azuis, verdes, prateadas.
Sigo a cordilheira de telhados do meu novo CEP e elas me conduzem a um esconderijo de criança. Era no telhado que eu ficava sozinha. Metade da casa de madeira tinha segundo pavimento, o que me concedia a outra metade do telhado onde eu acocorava para apreciar a rua. Era meu modo de voar com os pés no barro e os olhos ancorados no Rio Guamá.
Telhados são componentes indissociáveis da paisagem urbana. Telhados coloniais lembram Ouro Preto, Diamantina. Telha de barro invoca tradição, inspira segurança. Telhado é abrigo, sombra, silêncio. Telhado contém, delimita o continente, avisa ao céu que ali, naquela construção ponteaguda, há uma casa de morar.
Mas a arquitetura moderna do tempo de Brasília desprezou o telhado e convidou a cobertura para a festa. Nada de duas águas, água nenhuma, por favor. Os modernos achataram o teto das casas, colocaram lajes planas e as telhas apodreceram nas cerâmicas. Os modernos devem ter achado que telhado não tinha propriamente uma função. Pra que criar montanhas sobre as casas se um teto em linha reta, achatado, poderia muito bem cumprir o ofício de nos proteger das chuvas, dos ventos, das noites e dos sóis.
As casas sem chapéu conferem às cidades uma monótona regularidade linear. Os telhados trazem de volta a algaravia própria das cidades, propõem um jogo de diferenças, de desnivelamentos, de sobes e desces, de inclinações mais ou menos acentuadas. Há exageros de caráter ostentatório, por certo. Há também uma insuperável nostalgia brasileira de sermos um país do hemisfério norte, de neve caindo sobre os telhados fortemente inclinados para que a neve nele possa deslizar.
Um telhado na medida certa, que reverencie e respeite a seu modo, a arquitetura moderna — aquela que foi feita para acolher os brasilienses, em particular, e os brasileiros —, esse telhado dá gosto de ver e de querer um dia que ele me proteja das inconstâncias do viver.
Fonte: blog da conceicão, Correio Braziliense
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